Deus tem um corpo, e ele é a comunhão no pão
repartido!
A Eucaristia faz a Igreja, e é um mistério que ocupa um lugar central na
sua prática de fé e na sua espiritualidade. Mas é a Igreja que, partindo do
evento Jesus Cristo, definiu o sentido teológico, estabeleceu regras e
barreiras, colocou a Eucaristia sob o controle dos ministros ordenados. Celebrando Corpus
Christi, não esqueçamos que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, nos
remete a Jesus Cristo, mediador da Aliança entre Deus e a Humanidade, horizonte
no qual se realiza totalmente nossa vocação à liberdade e à comunhão fraterna.
Uma escuta atenta de Marcos nos ajudará a entender que Jesus e seus
discípulos não celebraram a
páscoa conforme as prescrições do judaísmo: não aparece o cordeiro, símbolo absolutamente central na ceia
pascal judaica, não se diz que ele fora sacrificado no templo, e, ao invés de
descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve (nos versículos 17-21,
omitidos na leitura oferecida pela Igreja) o clima de tristeza e apreensão
frente às traições que se insinuavam entre os discípulos mais próximos de Jesus.
É verdade que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de
tomar o alimento e a bebida, de proferir a oração de bênção e de agradecimento
e servi-los aos comensais. Mas Jesus introduz duas novidades que
divergem das prescrições rituais do judaísmo: não serve o cordeiro (que, ao que
parece, não está presente na ceia) e não relaciona o pão e o vinho com o evento
do êxodo. Antes, vincula o gesto de repartir o pão e o vinho com sua história
pessoal, com a caminhada percorrida e com os passos que estava para dar.
Sabemos de cor as palavras e gestos que Jesus realizou durante sua ceia
derradeira. Repartindo o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e,
passando o cálice de vinho, anuncia “este é o meu sangue da
nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus não vincula a ceia pascal com Moisés
e com o uma Aliança feita no passado, mas consigo mesmo e com uma
Aliança nova. E resta ainda seu surpreendente silêncio em relação ao
indispensável cordeiro. Marcos dá a entender que este cordeiro é o próprio
Jesus!
Há ainda três outros
detalhes, talvez mais que simples detalhes. O primeiro é que a comunidade dos/as
discípulos/as se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos. O segundo é a senha que Jesus dá
para que os/as discípulos/as encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa:
um homem carregando uma bilha de água. Ora, quem habitualmente carregava água
eram as mulheres, o que pode estar acenando para uma comunidade na qual a
presença de mulheres era determinante.
O terceiro detalhe
é mais importante e fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de
Jesus com os discípulos não
termina em festa, mas em jejum! Jesus diz que não beberá mais vinho até
que chegue o vinho novo do reino
de Deus. Aqui aparece o vínculo
indissociável e essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia
presente e o advento do reino de Deus, entre a História e a Utopia. Mais que
memorial ligado ao passado, a
Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do futuro, do Reino de
Deus, de um novo mundo possível.
A libertação efetiva e duradoura não é memória de um passado glorioso,
mas vocação, tarefa empenhativa que engendra o futuro. É Aliança nova e
irreversível mediante a qual Deus avaliza nossos mais profundos anelos de
liberdade e de vida plena. É disso que a Eucaristia é sacramento! Jesus liberta
a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o que foi e, mediante sua ceia,
nos engaja na construção daquilo
que será. Mesmo que isso exija que renunciemos ao aparente gozo e às
atrações dos velhos vinhos.
Este futuro que nos é dado como tarefa é sonho que passa pelo corpo e o
habita, o corpo de Cristo, o corpo eclesial, e o corpo dos irmãos e irmãs de
Jesus Cristo. Uma alma que despreza e submete os corpos não engendra novidades.
Um corpo que não vê outra coisa senão sua forma estética se torna estéril. Mas
um corpo que tece e sustenta teias de comunhão, que se faz dom sem reservas e
se arrisca nas lutas mais ousadas, torna-se eucarístico, cheio de graça e
gerador de graça. Como foi E é o corpo de Jesus Cristo!
Jesus de
Nazaré, filho de Deus e filho da Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e
Espírito feito carne, pão que alimenta e vinho que produz gozo: transforma
nossa vida em Eucaristia, e dá-nos uma insaciável fome de comunhão. Nesta
solenidade, no isolamento dos nossos lares, no acolhedor ambiente dos templos,
no espaço aberto das ruas, dá-nos um coração grande para amar e forte para
lutar. Não deixe tua ceia ser proposta como simples memória e o pão em amuleto.
E não nos deixes cair na tentação de fugir do eucarístico compromisso de
celebrar a ceia com os olhos fixos no Reino que ainda está vindo. Assem seja!
Amém!
Itacir
Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário