A fé ilumina a busca de solução para os dramas humanos.
É triste constatar,
mas vamos nos acostumando com atitudes e estruturas contrárias ao Evangelho de
Jesus Cristo. A cultura funciona de modo semelhante ao nosso corpo: se
começamos ingerindo pequenas doses de veneno letal e aumentarmos lentamente a
medida, as células e tecidos vão se habituando e não reagem mais. Assim também
acontece com a injustiça e a mentira: às custas de doses diárias, ininterruptas
e crescentes deste veneno, assimilamos esse material venenoso e mortífero e não
conseguimos mais esboçar reações contrárias. Até as Igrejas acabam obedecendo mais
à diplomacia que ao Evangelho.
O mundo no qual Jesus
se movimenta não é a metafísica abstrata ou o mundo das teorias, mas a
sociedade e a vida concretas. O que está em questão no evangelho proclamado
hoje não é a morte biológica, mas a morte social, a marginalização. Jesus não
se interessa prioritariamente por conceitos ou leis, pois está implicado com a
vida e a dignidade das pessoas. Sua preocupação não é com coisas que
denominamos espirituais ou interiores, mas com aquilo que melhora ou dificulta
o bem viver do seu povo.
As ações e palavras de
Jesus estão referidas e um contexto sociocultural bem específico. Marcos coloca
à nossa frente duas categorias de pessoas. Na primeira, entra Jairo, que tem
nome, é chefe de uma sinagoga e de uma família; entra também sua filha que,
estando doente, pode contar com a assistência própria da sua classe social.
Jairo trata Jesus como alguém do seu nível, fazendo-lhe a reverência devida às
pessoas consideradas dignas, mesmo escondendo uma certa falta de fé.
Na segunda categoria
está uma mulher sem nome, uma criatura anônima e perdida no meio da multidão,
encurvada sob o peso de uma hemorragia que a leva às mãos de exploradores e
duplica sua condição de marginalizada: mulher, impura e pobre. Ela não tem
nome, nem família, nem honra. Vive sob o manto da vergonha, esta sensibilidade
pessoal diante do que os outros pensam de sua condição. Ninguém intercede em
seu favor, e ela sabe que não pode se aproximar de Jesus como as pessoas
honradas. Mas Jesus não respeita os costumes do código de honra que rege as
relações sociais de Israel!
Na verdade, Jesus
subverte a ordem estabelecida quando se trata de socorrer as pessoas em
situação de vulnerabilidade. Neste caso, Jesus deixa em segundo plano o
atendimento ao pedido de Jairo, uma pessoa com status e reconhecimento social,
a se entretém com uma pessoa triplamente proscrita. E não quer nem saber se com
isso coloca em risco a vida da filha de Jairo. Aquela mulher anônima e sem
classe aproxima-se por trás e toca-lhe o manto, marcando-o com a impureza que
lhe era atribuída, e este gesto desesperado de uma pessoa habituada ao
sofrimento não passa despercebido, e toca profundamente a Jesus.
Mesmo sem ter pedido
nada a Jesus, a mulher, vítima de uma sociedade patriarcal, de um sistema de
pureza e de um sistema médico explorador tem prioridade sobre o pedido de
Jairo. Somente depois de curada, a mulher cai aos pés de Jesus, conta o drama
que vivera e que chegava ao fim, expõe a vergonha que carregava por ser vista e
tratada como impura. O medo e a vergonha desaparecem e dão lugar à alegria
quando ela escuta da boca de Jesus: “Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica
livre da tua doença”. Jesus vê o gesto dela como demonstração de uma fé
autêntica e fecunda, e não como sinal de desespero.
Depois disso, Jesus
segue em direção à casa de Jairo, indiferente à notícia de que a menina
morrera, como se não tivesse perdido nada. Pede apenas que Jairo siga o exemplo
daquela mulher anônima, que creia e tenha fé. É com a ajuda da mudança de
mentalidade de Jairo que a menina recupera a vida. Assim, para que possa merecer respeito, uma
ordem social e cultural precisa abrir-se à fé e aderir ao dinamismo do Reino de
Deus, que é uma nova ordem, um outro mundo, no qual todas as pessoas gozam do
mesmo status, de igual dignidade. Somente isso liberta os marginalizados e
poupa os ‘honrados’.
Jesus de Nazaré, profeta do Reino de Deus, amigo e
próximo das pessoas desprezadas e excluídas: tua delicadeza para com a mulher
anônima e mestra na fé nos comove e interpela, e a cura da filha de Jairo nos
convoca a renovar nossas instituições, subordinando-as à lógica do reino de
Deus. Como comunidade de discípulos e discípulas te pedimos: ajuda-nos a tirar
a máscara de piedade e de fé com a qual muita gente encobre a discriminação das
mulheres e a indiferença e ódio às pessoas e grupos marginalizados. Que jamais
cansemos de trabalhar para que os últimos sejam os primeiros. Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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