domingo, 10 de julho de 2022

O Papa Francisco e o Bom Samaritano

A parábola do “bom samaritano” segundo o Papa Francisco

Esta parábola recolhe uma perspectiva de séculos. Nela ressoa a pergunta de Deus: «Onde está Abel, teu irmão?» E a resposta que damos nós muitas vezes: «Sou, porventura, guarda do meu irmão?»

Nas tradições judaicas, o dever de amar o outro e cuidar dele parecia limitar-se às relações entre os membros duma mesma nação. O antigo preceito «amarás o teu próximo como a ti mesmo» geralmente entendia-se como referido aos compatriotas.

No Novo Testamento, ressoa intensamente o apelo ao amor fraterno: «Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14). «Quem ama o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1Jo 2, 10-11).

Fixemos o modelo do bom samaritano. Ele nos convida a fazer ressurgir a nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, de construtores dum novo vínculo social. Com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que a existência de cada um de nós está ligada à dos outros, e que a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro.

Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante. Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas.

Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima. Estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios. São sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento.

Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. As iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, impedem que construamos uma sociedade de exclusão, e nos fazem próximos.

A narração revela-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida.

As diferenças entre as personagens na parábola ficam completamente transformadas ao confrontar-se com a dolorosa aparição do caído, do humilhado. Já não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, entre sacerdote e comerciante. Existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo. Caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces.

A história do bom samaritano se repete. Torna-se cada vez mais evidente que a incúria social e política faz de muitos lugares do mundo estradas desoladas, onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada. E Jesus confia na parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome.

A perigosa indiferença, fruto do desprezo ou duma triste distração, que leva a não parar, faz das duas personagens um reflexo não menos triste daquela distância menosprezadora que nos isola da realidade. Há muitas maneiras de passar ao largo, que são complementares: uma é ensimesmar-se, desinteressar-se dos outros, ficar indiferente; outra seria olhar só para fora.

Nas pessoas que passam ao largo, há um detalhe que não podemos ignorar: eram pessoas religiosas. Mais ainda, dedicavam-se a dar culto a Deus. Isto é uma forte chamada de atenção: indica que o fato de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus. Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros.

(Fratelli Tutti, 57-74)


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