A parábola do
“bom samaritano” segundo o Papa Francisco
Esta parábola recolhe uma perspectiva
de séculos. Nela ressoa a pergunta de Deus: «Onde
está Abel, teu irmão?» E a resposta que damos nós muitas vezes: «Sou, porventura,
guarda do meu irmão?»
Nas
tradições judaicas, o dever de amar o
outro e cuidar dele parecia limitar-se às relações entre os membros duma mesma
nação. O antigo preceito «amarás o teu próximo como a ti mesmo» geralmente
entendia-se como referido aos compatriotas.
No Novo
Testamento, ressoa intensamente o apelo ao amor fraterno: «Toda a Lei se cumpre
plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14). «Quem ama o seu irmão
permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem ódio ao seu irmão
está nas trevas» (1Jo 2,
10-11).
Fixemos o modelo do bom samaritano. Ele nos convida a fazer ressurgir a
nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, de construtores
dum novo vínculo social. Com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que a
existência de cada um de nós está ligada à dos outros, e que a vida não é tempo
que passa, mas tempo de encontro.
Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e
determinante. Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se
desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Crescemos em muitos
aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais
frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas.
Habituamo-nos
a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos
caírem diretamente em cima. Estamos todos muito concentrados nas nossas
necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não
queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios. São sintomas duma
sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento.
Diante de
tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom
samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que
passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. As iniciativas com que se pode refazer uma
comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade
dos outros, impedem que construamos uma sociedade de exclusão, e nos fazem próximos.
A narração revela-nos
uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos
criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor
não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida.
As diferenças entre as personagens na
parábola ficam completamente transformadas ao confrontar-se com a dolorosa
aparição do caído, do humilhado. Já não há distinção entre habitante da
Judeia e habitante da Samaria, entre sacerdote e comerciante. Existem simplesmente dois tipos de pessoas:
aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se
debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham
distraídas e aceleram o passo. Caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos
rótulos e os nossos disfarces.
A história do bom samaritano se repete.
Torna-se cada vez mais evidente que a
incúria social e política faz de muitos lugares do mundo estradas desoladas,
onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam
tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada. E Jesus confia na
parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor,
reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome.
A perigosa indiferença, fruto do desprezo
ou duma triste distração, que leva a não parar, faz das duas personagens um
reflexo não menos triste daquela distância menosprezadora que nos isola da
realidade. Há muitas maneiras de passar ao largo, que são complementares:
uma é ensimesmar-se,
desinteressar-se dos outros, ficar indiferente; outra seria olhar só para fora.
Nas pessoas que passam ao largo, há um
detalhe que não podemos ignorar: eram pessoas religiosas. Mais ainda,
dedicavam-se a dar culto a Deus. Isto é
uma forte chamada de atenção: indica que o
fato de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus.
Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no
entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os
outros.
(Fratelli Tutti, 57-74)
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