Jesus é a aliança
definitiva de Deus com a humanidade
(Is 62,1-5; Sl 95/96; 1 Cor 12,4-11; Jo 2,1-11)
Depois de ter sido batizado no rio Jordão, Jesus não
foi festejar ou tirar férias! O batismo marcou o amadurecimento da sua consciência
messiânica e o início da missão de emancipar e libertar as pessoas dependentes
e oprimidas. Depois do batismo, Jesus voltou para a sua região periférica e, na
pequena vila chamada Caná, na Galiléia, realizou aquele que, segundo João, é o primeiro sinal da chegada do Reino de Deus:
transformou a carência em abundância, a tristeza em festa, a água em vinho bom
e abundante. Nada melhor que uma festa de casamento para deixar claro que Deus
se importa com as necessidades do seu povo e faz com ele uma aliança
definitiva. Nada melhor que o vinho para s expressar a alegria com os novos
tempos que se abrem. Assim entramos no tempo
comum: dispostos/as a entrar nesta Aliança e fazer tudo o que o Senhor nos
mandar.
“Faltou vinho...”
Estamos fartos das imagens que jogam na nossa cara
algumas carências e violências que agridem nossos irmãos e irmãs. Mas não
faltam pessoas prontas a culpabilizar as próprias vítimas. Girou o mundo a
notícia de um padre italiano que, diante da notícia do enésimo estupro, tornou
pública uma nota na qual atribuía ao próprio comportamento duvidoso das
mulheres parte da responsabilidade pela violência sexual cometida pelos homens
contra elas. Na mesma linha, os africanos poderiam ser culpados pela escravidão
e os povos do Sul pela histórica expropriação perpetrada pelos colonialistas.
As carências naturais sempre são menos numerosas e
menos doloridas. As carências de respeito, de afeto e de aconchego golpeiam as
crianças ainda na tenra infância e deixam feridas que nem a maturidade
cronológica consegue curar. As carências espirituais costumam atrair nuvens
escuras em pleno meio-dia da existência e multiplicar atitudes de dominação
predatória. As carências éticas cobrem de ambigüidade iniciativas aparentemente
beneméritas. As deficiências antropológicas levam a construir o Homem sobre
falsas bases. E a lista poderia prosseguir longamente.
Mas existem também as carências materiais, tanto mais
terríveis quanto mais disseminadas e toleradas pela indiferença. Estas são as
que dóem mais. E matam. O paradigma ocidental de desenvolvimento capitalista
não consegue cumprir suas promessas de abundância de bens e de felicidade para
todos/as. E o resultado é o bem-estar de poucos à custa do mal-estar e da
exclusão de muitos. Enquanto a festa continua na primeira classe, as talhas estão
vazias e a tragédia se alastra. E saber que menos de 1% da soma que a festa das
financeiras do mundo consumiu bastaria para acabar com a miséria no mundo...
“Havia aí seis
potes de pedra...”
E o que dizer quando até as religiões e Igrejas
ignoram o que acontece na sala dos fundos ou no andar de baixo? O que nos resta
quando seus mestres-sala, fazendo coro ao silêncio dos agentes da comunicação
de massa, fazem questão de ignorar o que está acontecendo e gastam seu precioso
tempo em lutas e críticas recíprocas, disputando histericamente os restos
daquilo que um dia foi um povo? Se o sal perde sua força, o que poderá
restituir o sabor à vida?
Mas tem gente que continua a apostar na eficácia dos
meios que já mostraram sua inutilidade ou sua trágica maldade. Aí estão os
líderes e dirigentes de Igrejas e religiões proclamando que a prática fiel de
ritos e leis, desde que acompanhada de um dízimo generoso, é o caminho para a
vitória e a prosperidade. Ao liberalismo não faltam missionários para repetir
que a competição e o empreendedorismo são fontes de crescimento e felicidade
geral. E sobram gurus que não se cansam de apresentar como se fossem novas as
antigas regras: cada um para si e deus para todos...
É tempo de perceber e de dizer com clareza e coragem
que este modelo de vida fracassou, que o vinho acabou no meio da festa, que as
talhas de pedra estão frias, pesadas e vazias. É preciso buscar novos caminhos,
inventar novas regras, sonhar novos mundos. É necessário também superar a
tentação de buscar a saída para trás, de ressuscitar tradicionalismos e
autoritarismos mortos e embalsamados. Precisamos abrir os ouvidos às vozes profeticamente
femininas que, movidas por um sentido que não é sétimo, há tempo vêm
denunciando: ‘Eles não têm mais vinho...’
“Façam o que ele
mandar...”
Não, a saída não é fazer aquilo que o mercado está
ditando. E nem mesmo aquilo que a cultura ocidental ensina há séculos. Não
basta obedecer às vozes que mandam ‘faça alguma coisa!’ Não basta manter a
receita que produziu a tragédia. É preciso descobrir a orientação correta e
fazer a coisa certa. E aqui entra de novo aquela lucidez que só o feminino
resistente e ousado consegue preservar: ‘Façam o que ele mandar!’ Eis a
indicação: acolher a Palavra e seguir o caminho aberto pelo jovem de Nazaré.
E ele começa pedindo para que mudemos de rumo. As
talhas velhas e pesadas não têm mais o que fazer com a purificação, até porque
Deus não está interessado nestes ritos. Entre Deus e seus filhos e filhas não
existe nenhum muro de leis e prescrições. Deus ama, é essencialmente amor e
atenção, e nada pode aproximar-nos dele a não ser este mesmo dinamismo. E para
evitar sobrecargas inúteis, ele mesmo toma a iniciativa e nos assume como
parceiros/as numa aliança eterna.
Como disse a Nicodemos, Jesus nos diz que precisamos
nascer de novo, e isso supõe desaprender e morrer. Como à mulher samaritana,
ele nos pede adoração em espírito e verdade, e isso significa derrubar os muros
que separam povos e religiões. Ao jovem André e a nós ele pede que partilhemos os
pães e peixes, para que as multidões tenham o alimento que necessitam e
sentem-se com dignidade reconhecida. A todos os legalistas ele pede que acolham
os pecadores e só atirem pedras se não tiverem limite ou pecado algum. A todos
ele nos manda: ‘Amem-se uns aos outros como eu amei vocês.’
“Provou a água
transformada em vinho...”
Aderir a Jesus Cristo é entrar num interminável
caminho de transformação. Deus se ocupa permanentemente em fazer novas todas as
coisas. Ao pobre e desanimado povo que volta do exílio Deus promete mudanças
radicais: eles serão como uma coroa preciosa nas mãos do rei; como a alegria e
as delícias de um noivo no dia do casamento; como a moça desprezada que
encontra seu amado. Deus não silencia e não se aquieta enquanto a justiça não surgir
como a aurora e a salvação como farol.
E esta transformação está em curso. É verdade que
existem pessoas – e até líderes religiosos – que, mesmo tendo provado a
qualidade do vinho novo, não se dão conta da sua origem, e simplesmente
continuam a festa de poucos. Não percebem que a lei divide e exclui, que a
aliança com os poderes é estéril e caducou, que a repetição de práticas de
piedade não é suficiente, que mudar o rótulo e embelezar o pacote não muda o
conteúdo da fé. Pobres mestres-sala, que estranham a mudança da água em vinho e
pensam que tudo deve continuar como antes...
Jesus manifesta sua glória devolvendo ao povo as
razões de viver e dando-lhes da sua própria vida. Glorifica a Deus quem se
exercita num amor pleno e leal, lúcido e generoso. A pessoa humana atinge seu brilho
máximo quando enfrenta com a cabeça erguida os velhos poderes e não poupa para
si mesma aquilo que tem de mais precioso: a liberdade, o afeto, a dignidade e a
capacidade de produzir, administrar e consumir. A glória de Deus é a vida do
ser humano, e a vida do homem é a abertura a Deus, ensinava Santo Irineu de
Lyon. Que brilhe também hoje esta divina glória!
“É o único e mesmo Espírito que realiza tudo
isso...”
É verdade que precisamos tomar distância e estabelecer
a diferença entre os caminhos e práticas de quem acredita e adere explicitamente
a Jesus Cristo e a postura daqueles/as que continuam apostando nas leis e
sistemas que discriminam. Mas precisamos também ter a sabedoria e a humildade de
reconhecer os diferentes dons e iniciativas que procedem do mesmo espírito. Os
rótulos que nos identificam como igrejas diferentes ou como escolas filosóficas
diversas importam pouco.
A seu modo, Paulo levou isso a sério. As capacidades são diferentes, mas o Espírito
é o mesmo. Os serviços são diversos, mas o Senhor é o mesmo. As ações são
múltiplas, mas o sujeito da atividade é sempre o mesmo Deus. E todos são chamados
a manifestar o Espírito parta o bem de todos. Dons como sabedoria,
conhecimento, fé, cura, profecia, línguas e todos os outros são o que são: dons
que recebemos em função dos outros, e não para nosso próprio bem e glória.
Comum a todos e mais desejável que tudo é o amor, cuja abundância Jesus
antecipou naquele casamento na Galiléia.
Pe. Itacir Brassiani msf
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