Basta
de sacrifícios!
A idéia de sacrifício parece conatural às religiões,
e o cristianismo não foge à regra. É verdade que a Igreja católica – nem as
Igrejas Ortodoxas e Portestantes – não aceita nem prescreve a prática de
sacrifícios de pessoas humanas ou de animais. Mas isso não impediu que a
linguagem sacrificial adentrasse e predominasse na sua linguagem litúrgica. E,
da tradição católica esta cosmovisão passou à cultura ocidental e chegou até à
linguagem da economia.
O antropólogo francês René
Girard pesquisou amplamente o fenômeno religioso do sacrifício. Ele concluiu
que, divididos por causa da inveja, da cobiça e da competição, os seres humanos
projetam toda tensão que esta luta gera sobre uma vítima (animal ou humana). O sacrifício ritual desta vítima – conhecida popularmente como bode expiatório –
sobre a qual é supostamente descarregada toda a violência social propiciaria a
reconciliação e limitaria a violência que, de outra forma, vigoraria incontrolável
na sociedade. Ao mesmo tempo, serviria para apaziguar a cólera de Deus, que
teria sido ultrajado pelos pecados cometidos pelos indivíduos e pelo agregado
social, e para evitar a punição à qual ele teria direito.
Estes aspectos antropológicos
e culturais do sacrifício foram desde logo aplicados a Jesus Cristo. Isso aparece
já de forma embrionária na interpretação da paixão, morte e ressurreição de
Jesus narrada nos evangelhos. Aquela que inicialmente era apenas uma entre
outras hermenêuticas do desfecho da vida de Jesus, pouco a pouco se tornou predominante
e, em alguns momentos, praticamente a única. Para isso contribuiu também uma
interpretação superficial e interesseira da carta aos Hebreus.
À luz da perspectiva
sacrificial, a morte de Jesus Cristo teria sido o pagamento exigido por Deus Pai
pelas incomensuráveis ofensas perpetradas pela humanidade contra ele. Uma
ofensa absoluta só poderia ser perdoada mediante um pagamento de valor
absoluto: o sacrifício do próprio filho de Deus. Com isso, as conotações e
tramas políticas e sociológicas que levaram Jesus à morte desaparecem
completamente. Mesmo a perspectiva profética da sua vida, e a perseguição e prisão
como consequências dessa missão, acaba completamente apagada. Jesus seria como
um cordeiro imaculado e calado que se deixa imolar para apaziguar as relações
humanas e sociais e para aplacar a presumida e iminente ira divina.
Isso tem importantes consequências
para a concepção do que seja a vida cristã. Os crentes demonstrariam autenticamente
sua fé em Deus repetindo sacramentalmente este sacrifício, ritualizado
especialmente na Eucaristia. Os sacramentos seriam a repetição simbólica –
incruenta – do sacrifício que Jesus fez de si mesmo no Calvário. Como se a
colina do Calvário perdesse todo seu aspecto de lugar de exclusão e de
violência e se tornasse um templo vistoso e acolhedor, no interior do qual
Jesus teria se auto-oferecido serenamente em sacrifício de agradável odor,
entre cânticos harmoniosos e em meio a uma nuvem de incenso... Mas não foram os
próprios senhores que templo que tramaram sua morte?!
Já no primeiro testamento está
presente uma perspectiva profética que contesta a necessidade de sacrifícios e
propõe substituílos pelo louvor. A glorificação de Deus se faz mediante o
louvor, e não através dos sacrifícios. E isso não tem nada a ver com a dor
provocada em si mesmo ou nos outros, e muito menos com a morte imposta
violentamente. Uma leitura atenta da carta aos Hebreus nos ajuda a entender que
a morte violenta imposta a Jesus, assumida por Jesus como dom radical e livre
de si mesmo, significa o fim de toda espécie de sacrifício. Como Jesus,
recebemos de Deus um corpo, e nós o glorificamos engajando nossa vida para
realizar sua vontade, dando o melhor de nós mesmos para que todos tenham vida
abundante.
O que é a Eucaristia, senão
celebração da bondade compassiva de Deus manifestada em Jesus Cristo e
renovação de nossa aliança com ele? Se nossa vida é substancialmente o
reconhecimento dessa misericórdia, nós glorificamos a Deus vivendo em nome de Jesus,
ou seja: embarcando no mesmo dinamismo que nos leva a ser dom, aliados/as, irmã/os,
companheiros/as. E os sacramentos recordam isso e nos confirmam sempre de novo
neste caminho. Agradamos a Deus e pacificamos o mundo engajando-nos
radicalmente na eliminação da violência e na criação e sustentação de laços que
nos tornam uma só família e um só povo.
Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário