Jesus
é aliança entre os povos e luz para as nações!
(Is 42,1-7; Sl 28/29; At 10,34-38; Lc
3,15-16.21-22)
Com a festa do batismo de Jesus terminamos o ciclo litúrgico do natal e começamos o tempo comum. Mas não podemos esquecer que,
na passagem da festa da epifania ao batismo de Jesus, estamos dando um salto
histórico de trinta anos. O tempo da assim chamada ‘vida oculta’ ou ‘privada’ de
Jesus, período que antecede o tempo da missã, é o tempo em que o Filho de Deus radicaliza a encarnação,
assume a vida humana comum até as últimas conseqüências. Estes trinta anos não são apenas uma preparação da sua
missão libertadora, mas a própria
libertação em processo. O batismo de Jesus – já homem formado! – no rio
Jordão expressa o amadurecimento da sua autoconsciência
messiânica e o reconhecimento pós-pascal da sua filiação divina. Como
soubemos acolher Jesus no cálido despojamento da manjedoura, sejamos também
seus companheiros/as nessa passagem absolutamente fundamental.
“E
todo povo foi batizado...”
Bem ou mal, o batismo passou a fazer parte da tradição
cultural dos nossos povos. Feito em casa ou celebrado na igreja, é um rito sócio-religioso
quase obrigatório. O sentido original perde-se no tempo e na inconsciência, mas
nele se esconde um valor antropológico
nem sempre explicitado: mais que um rito de passagem, é um rito de pertença a um povo, a uma nação. E isso mesmo quando
uma cultura marcada pela liquidez insiste no caráter transitório de todos os
vínculos.
Não podemos esquecer que o catolicismo foi religião
oficial no Brasil, e que, assim, o batismo cristão acabou adquirindo o caráter
de carta de cidadania brasileira. E numa sociedade que desarticula os vínculos e
fragmenta a vida dos mais pobres, o batismo representa a oportunidade de estabelecer algumas alianças de sobrevivência com
vizinhos/as, compadres e comadres. E passou a ser um ato de fé na força da vida,
sempre severina e precária.
Há tempo tomamos consciência dessa marca cultural e
social que o batismo adquiriu em terras brasileiras. Mas a má vontade com a
qual boa parte dos padres celebram muitos batizados, assim como a multiplicação
de exigências e cursos de preparação, deixa a impressão de que o batismo ainda é tratado como um rito
religioso e excludente. Entretanto, sem menosprezar ou negar este significado
antropológico e cultural, precisamos avançar para o seu sentido cristão
fundamental.
“Eu
coloquei sobre ele o meu Espírito para que ele promova o direito entre as
nações.”
João, o profeta que batiza o povo disposto a
converter-se, anuncia que está para chegar alguém mais forte e mais importante
que ele, alguém que batizará com o Espírito Santo e com fogo e reunirá uma
comunidade de discípulos/as itinerantes (representado pelo uso permanente de
sandálias). Entretanto, este profeta mais forte deixa-se batizar por João
Batista, junto com todo povo, no rio Jordão. Quem é esse personagem? De onde
ele vem e o que propõe?
O evangelista registra que ‘todo povo foi batizado’, e
não oferece nenhuma descrição ou detalhe
de um batismo especial de Jesus. E também não dá nenhuma informação sobre sua origem e a identidade. Lendo o início
do evangelho de Lucas, ficamos sabendo da sua misteriosa origem. Ele havia
nascido e crescido em lugares insignificantes
e suspeitos e, depois do encontro com o Batista e do discernimento no
deserto, iniciaria sua missão exatamente na
periferia do sistema.
O texto evangélico proclamado hoje omite a genealogia (cf.
Lc 3,23-37), que insere Jesus no próprio
coração da humanidade pecadora e sonhadora. Como sabemos pelos relatos
anteriores, ele tem uma origem social que para muitos é suspeita e duvidosa, traz
no corpo as marcas do trabalho e da marginalidade e, no coração, a esperança de
um Messias justiceiro dos pobres. Conhecedor que era das tradições messiânicas
do povo ao qual pertence, sabe que algumas abrigam estratégias violentas.
“O
povo estava esperando o Messias.”
Em apenas uma frase e dois versículos, Lucas dá por
terminada a descrição do batismo de Jesus. O tempo no qual ocorre não é
propriamente especial em relação ao batismo dos demais habitantes da região da
Judéia que confessam seus pecados. Não há notícia de tempo ou de lugar especial:
aquele tempo e aquele lugar reúne os
pecadores, e Jesus entra na fila, anônimo e incógnito. Mas há algo que
marca claramente a vida daquele povo: a expectativa de que Deus estava enviando
seu Ungido.
Ninguém vê nada de
especial durante o batismo de Jesus, nem mesmo João Batista.
Mas, depois do batismo, estando Jesus recolhido em oração, o céu se abre e o Espírito Santo desce sobre ele em forma de pomba.
E no céu aberto ressoa uma voz: “Tu
és meu filho amado; em ti encontro o meu agrado.” E nada mais. Nenhuma reação.
Nenhuma aclamação ou comentário. Tudo
transcorre como um fato absolutamente normal. Tanto que logo Jesus segue
sozinho para o deserto.
“Tu
és meu filho amado; em ti encontro meu agrado!”
Mas o que o batismo teria significado para aquele
jovem galileu? O batismo no rio Jordão representava o cancelamento dos débitos do povo frente ao judaísmo. Quem era
batizado na água se desobrigava frente às estruturas do sistema judaico,
representado pelos sacerdotes e encarnado no templo. Era um grito de liberdade. O batismo expressava
também o desejo de endireitar as estradas
e de preparar os caminhos para o encontro com Deus, e a expectativa de que
algo novo estava por acontecer.
Neste contexto, Jesus percebe que o céu está aberto,
que Deus não dá as costas ao seu povo. Na imagem da pomba, ele intui que é tempo de retorno dos exilados (cf. Is
60,8; Os 11,11), de renovação da aliança
(cf. Gn 8,6-12), de recriar relações de
afeto e amor (cf. Ct 2,14; 5,2). E entende que ele – um homem que vem da
pequena Nazaré e da suspeita Galiléia – é o filho querido que muito agrada a
Deus. Descobre que é o filho ungido
que se opõe aos poderosos da terra (cf. Sl 2), servo fiel que carrega os pecados do mundo (cf. Is 42,1-7), broto promissor numa terra ressequida
(cf. Is 11,1-2).
“E o
Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma corpórea, como pomba.”
O batismo mostra que Jesus cresce na consciência de
que uma nova criação está em gestação.
Trata-se de um processo de alargamento da
consciência que antecede o batismo e prossegue depois dele. Ao participar
de um rito que proclamava o cancelamento
dos pecados e débitos cobrados pelo templo, que tornava o povo livre frente
aos seus valores e leis discriminadoras, Jesus
se descobre uma pessoa livre, um ‘fora de lei’. Não há mais judeu ou grego,
homem ou mulher, escravo ou livre.
E é por aqui que
começa a nova criação, pois o pecado não
é a ação contra ou fora da lei, mas o cumprimento das leis que hierarquizam e
discriminam pessoas e povos. Os doutores da lei e os sacerdotes pecavam porque
cumpriam os detalhes da lei e esqueciam a compaixão humana. A nova sociedade e a nova criação começam exatamente com a renúncia a esta velha ordem corruptora e opressora.
Jesus enfrentará de novo essa velha ordem nas tentações.
O Espírito que desce ‘em forma corpórea, como pomba’ entra em cena para recordar
o Espírito que pairava sobre as águas e que presidiu a primeira criação. Ele se
faz presente em Jesus e, posteriormente, nos/as discípulos/as, para fazer a passagem da minoridade que limita e da
escravidão que amedronta para a maioridade e a liberdade de filhos/as,
nos/as quais o próprio Deus se reconhece e tem prazer. Ele suscita testemunhas e sustenta a prática do
bem e da justiça, tanto em Jesus como nos discípulos/as.
“Eu
chamei você para a justiça, tomei-o pela mão e lhe dei forma...”
Às vezes temos a impressão de que o seguimento de
Jesus Cristo é um caminho difícil e um fardo pesado, que para viver bem
deveríamos renunciar ao Evangelho e colocar-nos a serviço dos nossos belos e
infalíveis interesses. Mas qual é o preço que o mundo está pagando por assumir e
propagar o ‘evangelho’ da competição predatória? A fome que agride multidões
nos países africanos e as armas que assassinam crianças inocentes nos Estados
Unidos?
Jesus de Nazaré,
filho amado do Pai, irmão querido da humanidade, servo da paz e da justiça! No
dia em que recordamos tua entrada na fila dos pecadores para receber o batismo
de João, pedimos por tua Igreja: que ela não seja leal senão a ti e não procure
agradar senão ao teu e nosso Pai. Que a Igreja, comunhão articulada de
batizados/as, seja um ensaio geral da nova ordem, na qual as desigualdades
sejam eliminadas e a dignidade de cada criatura seja afirmada sem mas nem
porém. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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