A Igreja e o conceito de ‘gênero’
Recusar a tomar conhecimento
de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a
priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir
rumo à verdade. A opinião é de Anne-Marie de la Haye,
secretária do Comité de la Jupe, grupo de
católicos e católicas leigos franceses, em artigo publicado no sítio da
entidade, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto,
publicada em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517325
Somos cristãs e cristãos, vinculados à mensagem do
evangelho, e vivemos fielmente esse vínculo no seio da Igreja Católica. A nossa
experiência profissional, os nossos engajamentos associativos e as nossas vidas
de homens e de mulheres nos dão a competência para analisar as evoluções das
relações entre os homens e as mulheres nas sociedades contemporâneas, e para discernir
os sinais dos tempos.
Tomamos conhecimento das recomendações do nosso Santo
Padre, o Papa Bento XVI, dirigidas ao Pontifício Conselho Cor Unum, nas quais ele expressa a
sua oposição contra o que ele chama de "teoria do
gênero", colocando-a no
mesmo plano das "ideologias que exaltam o culto da nação, da raça, da
classe social". Consideramos essa condenação infundada e difamatória. A
recusa que a acompanha de colaborar com toda instituição suscetível a aderir a
esse tipo de pensamento é, a nosso ver, um erro grave, tanto do ponto de vista
do caminho intelectual, quanto da escolha das ações tomadas a serviço do
evangelho. Afirmamos aqui, com a máxima solenidade, que não podemos subscrevê-la.
Em primeiro lugar, ela é esterilizante. Com efeito, no domínio do pensamento, recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade. O que teria acontecido se Tomás de Aquino tivesse se abstido de ler Aristóteles, com o pretexto de que ele não conhecia o verdadeiro Deus e que as suas obras lhe haviam sido transmitidas por tradutores muçulmanos?
Em primeiro lugar, ela é esterilizante. Com efeito, no domínio do pensamento, recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade. O que teria acontecido se Tomás de Aquino tivesse se abstido de ler Aristóteles, com o pretexto de que ele não conhecia o verdadeiro Deus e que as suas obras lhe haviam sido transmitidas por tradutores muçulmanos?
Além disso, in loco, saber se se
deve ou não colaborar com atores animados por ideias diferentes das nossas é
uma decisão que só pode ser tomada naquele lugar e naquele determinado momento,
em função das forças políticas e da urgência da situação. O que teria acontecido,
a propósito da luta contra o nazismo e o fascismo, se os resistentes cristãos
tivessem se recusado a lutar ao lado dos comunistas, ateus e solidários de um
regime criminoso?
Vamos agora ao fundo da questão: deixemos de permitir
que se diga que a noção de gênero é uma máquina de guerra contra a nossa
concepção de humanidade. É falso. Ela é o resultado de uma luta social, isto é,
a luta pela igualdade entre homens e mulheres, que se desenvolveu há cerca de
um século, inicialmente nos países desenvolvidos (Estados Unidos e Europa), e da qual os países em desenvolvimento estão
agora começando a sentir os frutos.
Essa luta social estimulou a reflexão de pesquisadores
em inúmeras disciplinas das ciências humanas; essas pesquisas ainda não
terminaram e não constituem, de fato, uma "teoria" única, mas sim um
campo diversificado e sempre em movimento, que não deveria ser reduzido algumas
de suas expressões mais radicais.
O verdadeiro problema, portanto, não é o que se pensa
da noção de gênero, mas sim o que se pensa da igualdade homem/mulher. E, de
fato, a luta pelos direitos das mulheres coloca novamente em discussão a
concepção tradicional, patriarcal, não igualitária, dos papéis atribuídos aos
homens e às mulheres na humanidade. Nas sociedades em desenvolvimento, em
particular, a situação das mulheres ainda é tragicamente não igualitária. O
acesso das mulheres à educação, à saúde, à autonomia, ao controle da sua
fertilidade se depara com fortes resistências das sociedades tradicionais.
Pior ainda: em alguns lugares, é constantemente
ameaçado até mesmo o simples direito das mulheres à vida, à segurança e à
integridade física. Não se pode, como faz o papa nos seus discursos sobre esse
assunto, fingir que se saúda como autêntico progresso o acesso das mulheres à
igualdade dos direitos e, ao mesmo tempo, continuar defendendo uma concepção de
humanidade em que a diferença dos sexos implica uma diferença de natureza e de
vocação entre os homens e as mulheres. Há nisso uma distorção intelectual
insustentável.
Como negar, de fato, que as relações homem/mulher são
objeto de aprendizagens influenciadas pelo contexto histórico e social? Fingir
conhecer absolutamente, e com o desprezo de toda pesquisa realizada com as
aquisições das ciências sociais, qual parte das relações homem/mulher deve
fugir da análise sociológica e histórica manifesta um bloqueio do pensamento
nada justificável.
Por trás desse bloqueio do pensamento, suspeitamos que
há uma incapacidade de tomar partido na luta pelos direitos das mulheres.
Porém, essa luta não é, talvez, a dos oprimidos contra a sua opressão, e o
papel natural dos cristãos talvez não é o de derrubar os poderosos de seus
tronos?
Levantar-se a priori contra até mesmo o uso da noção
de gênero é confundir a defesa do evangelho com a de um sistema social
particular. A Igreja, de fato, cometeu esse erro há dois séculos e meio,
confundindo defesa da fé e defesa das instituições monárquicas, e mais tarde
dos privilégios da burguesia. Refazendo um erro semelhante, nós nos
condenaríamos a uma marginalização ainda maior do que a que já nos encontramos.
Como
não temer que essa condenação apressada seja uma das correntes de uma cruzada
antimodernista que visa a demonizar uma evolução contrária às posições
adquiridas pela instituição?
É por isso que, com profunda preocupação, nós apelamos aos fiéis católicos, aos
padres, aos religiosos e religiosas, aos diáconos, aos bispos, para que evitem
à nossa Igreja esse impasse intelectual e para que saibam reconhecer, por trás
de uma disputa sobre termos, o que verdadeiramente está em jogo na luta pelos
direitos das mulheres e o lugar certo da sua Igreja nessa luta evangélica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário