sábado, 5 de janeiro de 2013

Primeiros passos de um missionário


Tirando as sandálias para entrar numa terra santa
Rafael Hoffmann é um jovem postulante da Província Brasil Meridional dos Missionários da Sagrada Família. Depois de concluir o curso de filosofia e afastar-se do seminário para entrar no mundo do trabalho, está retornando ao processo formativo. A seu pedido, está fazendo o postulantado na Comunidade Missionária Interprovincial da Bolívia. A seguir, suas primeiras impressões e emoções, escritas ainda sob o calor e o fragor da sua primeira experiência de ser estrangeiro. Agradeçoao Rafael a permissão para publicar seu testemunho no Blog Nazaret.
Primeira casa MSF na Bolivia - Bairro Cambao
Uma sensação de desconcerto
Ao pisar em terras bolivianas é que, por assim dizer, “caiu a ficha”. O primeiro dia foi simplesmente desconcertante para mim! Uma coisa é você imaginar como serão as coisas nesse novo país, nessa nova realidade, e outra é chegar nesse país e ver com seus próprios olhos a realidade antes imaginada. Ao desembarcar no aeroporto e ser indagado, no idioma local, sobre o meu tempo de permanência aqui, a vontade que tive foi de responder: “Volto para o Brasil no próximo vôo!”, porque já me vi “às voltas” para responder aquele simples questionamento. Mas, nesse caso, ainda me saí muito bem. No restante do dia, o que mais se repetiu foram momentos em que um sorriso foi tudo o que consegui dizer.
A experiência que tive aqui no meu primeiro dia foi algo nunca antes vivido. Ouvir pessoas conversando entre si e não entender nada do que falam, não é novidade. Mas quando as pessoas referem-se a você, quando lhe dizem algo, quando lhe dão boas vindas e fazem perguntas, e entende-se não mais que uma ou duas palavras em toda uma frase, aí é que a coisa fica feia. Ninguém aqui fala grego, mas a rapidez com que falam me deixou com a cabeça dando voltas. Em toda uma frase, consegui entender uma ou duas palavras daquilo que me diziam. E aí, o que fazer? A resposta que pude dar foi a mesma para todos: somente um sorriso amarelo de quem ficou completamente sem jeito diante disso. Em resumo, o primeiro dia foi assim, entre sorrisos amarelos e ouvidos aguçados para compreender algo. Entre um sorriso e outro, algumas palavras novas no vocabulário, aprendidas mais por associação do que por qualquer outra coisa.
Nos dois dias seguintes, a vontade que tive foi de esconder-me em algum lugar, voltar a falar em português e tirar da cabeça o peso de aprender a falar em espanhol e principalmente de compreender o que as pessoas me diziam. Mas, como isso não foi possível e não é esse o objetivo ao estar aqui, restou-me encarar a situação. Aos poucos, com a convivência com os demais as coisas foram melhorando e o vocabulário foi crescendo. A tentação de voltar a falar português com os colegas brasileiros que residem aqui, por vezes, é grande. Todos me ajudam a aprender o espanhol, porém Ir. Hector, do Chile, é quem mais me ajuda a aprendê-lo. Corrige-me quando necessário, responde minhas dúvidas sobre a tradução e o significado das palavras que não compreendo.

Um povo muito acolhedor
Felizmente não estou tendo muitos problemas para adaptar-me à Santa Cruz. Algumas dificuldades há, sim, mas nada que não possa ser superado. As principais dificuldades foram o calor e a hora local. Felizmente, desde que estou aqui, quase todos os dias houve vento, o que abranda um pouco o calor, que tem chegado quase tosos os dias aos 38 graus. O único problema é que com o vento também vem o pó, que toma conta de tudo. Como aqui no bairro não há asfalto nas ruas, que são basicamente de areia, não é necessário muito vento para fazer com que tudo fique completamente empoeirado. Caminhar pelas ruas em dias quentes e com vento, então, é uma beleza.
Criança boliviana descendente dos povos originarios
Sobre o povo daqui, até agora só tenho a agradecer. Fui muito bem acolhido. O povo, em geral, é muito acolhedor, fui muito bem recebido. Um povo muito participativo nas celebrações e tudo mais. Impressionou-me a participação das pessoas em celebrações e, mais ainda, a participação dos jovens. Em quase todas as paróquias há grupos de jovens, sendo que participam dos encontros, realizam as missas juvenis e são muito bem organizados e coordenados. A participação de crianças nas celebrações e encontros também é grande. A Igreja Católica, aqui, ainda tem muita influência e os padres ainda são vistos como uma grande referência para todo o povo. Há uma religiosidade popular, se pode ser chamada assim, muito forte. Encontros de discussão dos assuntos que dizem respeito às comunidades são realizados frequentemente e contam com grande participação do povo. Novenas são realizadas frequentemente, se bem que a maioria não são exatamente novenas, tendo em vista que duram 30 ou até 40 dias. Estou curioso para ver a celebração do dia de finados, que por aqui é um grande acontecimento e que envolve uma grande preparação.
Muros que separam ricos e pobres
Sobre Santa Cruz de la Sierra, o que pude perceber até agora nas poucas idas e vindas que fiz até o centro, é a nítida separação entre ricos e pobres. No bairro onde residimos, Bairro Cambaó, e nos bairros que nos cercam, a pobreza está escancarada nas ruas e nas casas. Casinhas pequenas, algumas feitas de barro e cobertas com folhas de palmeira, e algumas onde ainda não há energia elétrica. O lixo está espalhado pelas ruas, tomando conta de tudo. Uma das cenas que mais se vê por aqui são porcos, vacas e toda sorte de animais soltos pelas ruas, chegando as vezes até a parar o trânsito. Também chama a atenção a quantidade de cães soltos pelas ruas. O comércio mais comum por aqui é aquele realizado a beira das estradas. São pequenas tendas onde são vendidos sucos, frutas, pastéis e vários tipos mais de comidas e mantimentos.
Porém, este cenário muda a medida que se aproxima o centro da cidade. Muda completamente a situação dos carros que circulam, que deixam de ser carros velhos, batidos e em péssimas condições, e passam a ser camionetes de luxo. Mudam também as pessoas que dirigem estes carros: enquanto nos bairros, ou pelo menos no bairro onde residimos, não se vê uma pessoa que não seja descendente dos “povos originários”, no centro o que mais se vê são pessoas vindas de outros países. A medida que aumenta a proximidade com o centro mudam as  moradias, que deixam de ser casinhas pequenas e passam a ser enormes e luxuosos prédios e casas. Restaurantes e outros estabelecimentos luxuosos também estão por toda parte.

As ruas nos bairros periféricos de Santa Cruz
Aspectos políticos e sociais
Sobre a política e a administração de Evo Morales, conforme o relato feito pelo Pe. André na ocasião de sua visita a Santa Cruz de la Sierra, de fato percebe-se que em Santa Cruz há uma grande oposição ao atual governo. As pichações espalhadas pelas ruas contêm ameaças e toda espécie de ofensas. Já ouvi de muitas pessoas que aqui se vive a “Evolândia”, que Evo está fazendo da Bolívia aquilo que bem quer, segundo sua vontade. Segundo relatos de algumas pessoas, a Bolívia está vivendo um período de ditadura. Tive uma grande surpresa nos primeiros dias que estive por aqui: enquanto assistíamos a um noticiário local, fiquei simplesmente chocado quando vi um dos ministros, não recordo de que setor, dizendo que estar sob o efeito das folhas de coca para tomar suas decisões lhe ajuda muito mais que as pessoas que o auxiliam e que o conteúdo da maioria dos livros que servem como base para seu trabalho. Dizer o que diante disso...
Quando o assunto é educação a situação é preocupante. Tenho ouvido relatos de pessoas que vivem aqui sobre a má qualidade da educação básica e mesmo da educação superior. Até mesmo instituições de ensino privadas, mantidas por congregações religiosas e que no Brasil são referências na educação, aqui não passam de uma instituição qualquer, sendo que só o que distingue as pessoas que os frequentam é a condição financeira, uma vez que a qualidade da educação e dos conteúdos é a mesma que a das escolas públicas, chegando a haver casos em que há professores, destas mesmas instituições, que não sabem explicar sequer os assuntos que lhes competem. Além disso, aqui, aqueles que têm dinheiro para pagar as faculdades, em muitos casos, não necessitam sequer completar o ensino médio. Da educação básica passam direto ao ensino superior. Mesmo sobre os cursos de medicina, as referências estão longe de ser as melhores... Psicologia é um dos cursos mais procurados por aqui e, segundo os comentários que se ouve, também deixa muito a desejar. A situação da educação reflete a atual situação da saúde aqui, que é bem precária. A Bolívia é o país do mundo em que mais pessoas morrem em consequência da AIDS e de DSTs. Fica no ar a questão: pessoas que cursam psicologia, medicina e afins, que vão trabalhar e tratar pessoas, estarão de fato sendo preparadas para isso...?
O ‘caos organizado’ do trânsito e do mercado popular
Outra coisa que interessante para se ver por aqui e que muito me chamou a atenção foi o “Abasto”, famoso mercadão de Santa Cruz, ao qual Pe. André também fez referência em um de seus e-mails. Eu já havia estranhado o Mercado Público de Porto Alegre, mas perto disso aqui, não há comparação. Carnes expostas por todos os lados em uma das entradas do mercado, sem estar em refrigerador ou algo do gênero. O cheiro das carnes toma conta de toda uma das “alas” do mercado, misturando-se com o cheiro dos demais alimentos que são vendidos. Sacos e mais sacos de folhas de coca a venda, pessoas vendendo sucos, pastéis, e mais alguns tipos de comidas típicas, um vai e vem que não cessa. Em meio a multidão de gente que circula estão meninos trabalhando com carrinhos de mão, levando e trazendo as compras das pessoas de um lado para outro, carregando pesos que até para pessoas adultas seria um peso quase que exagerado.
Saindo do mercado, um trânsito quase incompreensível. Táxis e mais táxis tomam conta das ruas. Qualquer coisinha que aconteça, por menor que seja, é motivo para meter a mão na buzina. O trânsito daqui, de forma geral, é caótico. Não sei como não morrem mais pessoas ou como o número de acidente não é maior. Se bem que, o que presenciei até agora, foi um acidente só, uma batida de leve de um carro na traseira de outro e o que foi resolvida ali mesmo: um pequeno amassado em um dos carros, uma pequena discussão, cada um tomando seu rumo, e é vida que segue. Essa é Santa Cruz de la Sierra.
Capela Noosa Senhora de Guadalupe do Bairro Cambao
Ainda sobre o trânsito, para aqueles que necessitam andar de ônibus por Passo Fundo ou outro lugar que seja, por favor, não reclamem da qualidade do transporte! Se comparado com Santa Cruz, o transporte coletivo que há aí é uma maravilha. Só o que circula por aqui são micro-ônibus, e todos, sem exceção, estão em péssimas condições. Cobrador de ônibus aqui é coisa que não existe. O motorista dirige, recebe o valor da passagem, dá o troco quando necessário, e tudo isso sem parar. Isso quando não está dirigindo e segurando alguma criança nos braços enquanto dirige, e falando ao celular. Parada de ônibus também é coisa que não se vê por aqui. Enquanto o ônibus vai passando as pessoas, estejam onde estiverem, pedem para que o motorista pare e entram no ônibus. O mesmo acontece para desembarcar do ônibus. A qualquer altura da viagem pedem para desembarcar, sem que haja lugares de referência, como as paradas de ônibus ou algo do gênero, chegando a desembarcar no meio da rua as vezes. Andar de ônibus para mim aqui não está entre as atividades mais prazerosas. Como geralmente estão abarrotados de gente não havendo mais lugar para sentar, resta-me ficar em pé, o que significa ficar todo encurvado, tendo em vista que os micro-ônibus daqui, e também a maior parte das coisas que há por aqui, não são feitas para pessoas com mais de 1,70m de altura.
Uma experiência inicial profundamente marcante
Isso é pouco do que se vê e do que se vive por aqui. Santa Cruz e seus contrastes. Mas, apesar de todos os problemas, apesar de uma realidade muito diferente do Brasil, vir para cá, até agora, tem sido uma das melhores experiências que já fiz. Mesmo com todos os problemas e dificuldades, mesmo sendo chamado de louco por alguns, me sinto feliz aqui. Poder realizar alguma forma de trabalho com as pessoas daqui, poder ajudar, minimamente que seja, e ver que as pessoas daqui, mesmo com todos os problemas que enfrentam, não perdem a alegria e o sorriso no rosto, já é motivo suficiente para seguir por aqui! Espero que consiga fazer deste ano ou do tempo que permanecer por aqui, um ano proveitoso e de muito crescimento como pessoa, como ser humano.
Rafael Hoffmann

Nenhum comentário: