A propósito dos cinco anos da
missão de Moçambique (2)
Dependência
econômica
Alguns passos foram dados, outros resultados obtidos e enormes desafios
ainda persistem. Somos brancos (mucunhas, apelido pejorativo, inicialmente dado
aos dominadores portugueses). As construções, veículos são deles e não da
comunidade. Os cristãos, na sua maioria dizem que ajudam os missionários, não consideram
Centro de Formação como algo da comunidade.
Resistem em contribuir economicamente. O dízimo é taxa anual. Muitos
apenas pagam quando precisam ou buscam sacramentos. Coletas, nada mais do que
12 anuais. Na missão, agora são feitas em produtos (milho e feijão), num
momento do ano, com o título de coleta de ação de graças, mediante fixação de
um mínimo por comunidade. Muitas comunidades continuam fazendo mínimos
esforços. A metade desta coleta é entregue à diocese. 50% do dízimo também é
destinado à diocese.
A luta cotidiana para (sobre)viver |
A missão consegue algum resultado satisfatório. Para cobrir despesas de
combustível existe uma taxa paroquial anual por comunidade. Podemos considerar que houve crescimento
significativo em receita, mas sem acompanhamento respectivo de conscientização
eclesial. Somos uma Igreja dependente do
exterior: província, congregação e outras entidades de ajuda. A carência das
comunidades, sob todos os pontos de vista, também da imaginação, uso do
cérebro, é vastíssima, diria até assustadora.
Situação religiosa
Se no Brasil falamos, tantas vezes, do fenômeno do sincretismo religioso,
aqui ele é bem mais intenso e vigoroso. Curandeiro, feiticeiro, médico
tradicional são buscados com assiduidade. O doente vai ao hospital e depois ao
curandeiro. O adivinho é necessário para
“decifrar” os acontecimentos. Muitos conflitos, envolvendo outras lideranças
locais acontecem nas comunidades.
Cultos tradicionais são comuns. Ritos de iniciação, funerais, em geral,
são privativos dos leigos. Agora a diocese está incentivando os ritos de
iniciação nas comunidades, o que gera conflitos com autoridades locais, especialmente
os régulos, antigos chefes tribais e seus ajudantes. Todos costumam cobrar
taxas, exigir donativos em alimentos. É o fenômeno chamado de cabritismo, pois
muitas vezes se exige um cabrito em troca de favores ou trabalhos religiosos.
Diversos régulos acompanhados de feiticeiros visitam residências e
exigem contribuições em dinheiro. Quem se nega a pagar, corre o risco de
represálias como prisão, mediante criação de pretextos múltiplos. Sair da
prisão custa dinheiro. Há pouco houve um trabalho intensivo de expulsão de maus
espíritos do mercado público local de Mecuburi. Os curandeiros, vindos de fora,
cobravam 50 meticais de cada comerciante, que já pagam taxa anual e dias de uso
do seu espaço. É impressionante a criatividade para “garfar” de todas as
autoridades locais, criam múltiplos artifícios para roubar, por isso jamais
despreze a criatividade ou inteligência da população local.
O serviço
e a necessidade
Retornando à pastoral propriamente dita, nem sempre nosso modo de
observar os fatos concordam com as motivações que levam os cristãos a assumir
serviços ou ministérios nas comunidades. Não raro o espírito de serviço,
ausente ou rarefeito, é substituído pela sede de poder. Diversas comunidades,
dominadas por famílias ou clãs, fazem o impossível para não perder o “osso”.
Ancião cessante cria nova comunidade e leva consigo sua “turma” para seguir
mandando. As eleições de anciãos, muitas vezes, são feitas por cooptação.
O desejo de poder, mesmo que inconsciente, é forte. A conivência ou o
acobertamento de exageros como cobranças extras ou a inclusão de apadrinhados
em listas de sacramentos, sem idade mínima ou preparação adequada também ainda
é comum. O que nós, num primeiro
momento, admiramos como dedicação, muitas vezes, envolve subterrâneos outros,
não visíveis a olho nu. Toda oportunidade que possibilite espaço de poder e
chance de ganhar alguma coisa é sempre bem vinda. A título de ilustração, na comunidade de
Nacuacuali, onde se localiza a missão, teve sacramentos no Natal. As lideranças
cobraram cem meticais, cachaça (vinho como aqui se fala) e farinha, dos jovens
catecúmenos; dos casais cobraram galinhas... Tudo isso, no frigir dos ovos, é
uma artimanha para ganhos extras.
Residencia dos missionarios, em Mecuburi |
Outra dimensão aponta para a onipresença do partido que governa o país.
Boa parte de nossas lideranças são filiados. É obvio que o fazem na esperança
de alguma vantagem. Em qualquer aldeia, bairro ou similar o partido está
presente, organizado. Além do régulo, com seus coadjuvantes, encontramos chefes
de população, secretários de bairros e outros. Todos recebem algum tipo de
auxílio oficial. O partido se expande qual tiririca, pela semente e pela raiz.
Pessoas mais vividas neste continente não hesitam em afirmar que a África vive
um tempo de ditaduras de partidos.
A
caminhada eclesial
Falava-se muito em Igreja ministerial, existência de leigos, batizando
ou assistindo casamentos, perspectivas de ordenação de presbíteros leigos,
casados, de acordo com o livro de Professor Luciano, entitulado “Igreja
Ministerial”, análise de um período de 1968 a 1986. O êxodo dos missionários
(muitos expulsos) e a escassez de clero nativo obrigaram as dioceses a mudar.
Hoje este quadro está totalmente modificado. Penso que a Igreja local fez um caminho de
involução muito grande. As congregações religiosas, além do trabalho de
canonização de seus fundadores, buscam espaço para sobreviver
institucionalmente. Por detrás do espírito missionário há outras motivações,
nem sempre tão cristalinamente evangélicas. O fenômeno missionário é bem mais
complexo do que os discursos e planos.
O mesmo texto analisa a situação
vocacional. Insiste na importância do clero manter suas raízes culturais, num
estilo de vida simples, próximo do povo. O aburguesamento do clero é notório. O
caminho vocacional é um trampolim de ascensão social e não raros os casos de
presbíteros que emigram para a Europa ou EUA, motivados ou movidos pela
perspectiva de ganhar dinheiro. O
compromisso com a família também é um componente cultural forte. O presbítero
se sente mais ligado ao compromisso familiar do que à instituição igreja. É
difícil entender o que se passa na cabeça do clero local que, com frequência,
expressa animosidade contra os missionários “ricos”. As opções dos jovens são
pífias, por isso a alternativa vocacional presbiteral é muito atraente.
O desafio
da língua
Outro grande desafio é o da língua. Aqui
se fala macua. Muitíssimas crianças,
após cinco anos de escola, não falam nenhuma palavra em português. Com a promoção automática é comum que, no
término da 7ª classe, diversos adolescentes continuem analfabetos. Aqui, com muita frequência, escola ainda está
distante do ensino-aprendizagem. É deprimente o quadro, mas é a triste
realidade.
O povo não fala português. Nós não falamos
macua. Os tradutores, muitos deles que não conseguem entender nosso modo de
pensar, acabam assumindo a tarefa de traidores. “Dizer” a missa em macua muda
pouco. Nos tornamos peças foclóricas. Não tenho dúvida nenhuma de que um imenso
fosso nos separa, culturalmente falando. Outras épocas evidenciam situações
distintas: gramáticas, dicionários e congêneres foram elaborados por
missionários brancos.
Evangelização
ou sacramentalização?
No meu modo de entender, continuamos a fazer a tarefa da sacramentalização. Isso já é um trabalho pesado, considerando as
caóticas vias de circulação, número de comunidade, problemas de saúde... Não
temos um foco preciso. Falamos bastante em formação, sem definição de um
horizonte concretizável. Aliás, planejamento diocesano de pastoral inexiste.
Apenas se elabora um cronograma anual de atividades, sujeito a constantes
alterações e suspensão de agendas.
Sem planejamento (traçado de objetivo, definição de ações, previsão de
recursos...) aqui se cultiva o hábito da elaboração de relatórios. A
preocupação em fazer relatório é bem maior do que o efetivo empenho do
trabalho. Relatório (seria uma atenuante de avaliação?) sem planejamento não
permite mensurar nada. Antes a desculpa comum era a de que o povo não sabia
ler.
A título de exemplo, registro a pouca expressão que encontra a dimensão
bíblica na formação. O missal local já
apresenta também as leituras dominicais, de modo que a bíblia apenas é usada na
hora da sua apresentação, no início da liturgia da palavra. Até os anciãos ou
animadores apanham feio da bíblia, quando são desafiados a encontrar um texto.
O professor Luciano, ao escrever sobre a Igreja de Moçambique (Igreja ministerial)
aborda, repetidas vezes, a iniciação bíblica dos anciãos. Hoje a situação é bem
distinta. O período enfocado pelo autor é de 1968 a 1986.
A missão
como cuidado pastoral
A Pastoral perpassa a vida toda. Num universo onde a fome é endêmica, as
condições de saúde péssimas, a começar pela qualidade e quantidade de água, a
forma de produção primitiva, hábitos de alimentação que geram subnutrição, é
impossível pensar que só rezar é o
suficiente. Com certeza, rezamos pouco e talvez até mal, mas não dá para
conviver com o quadro atual. A miséria choca, mas a resignação, a descrença
deste povo em si mesmo e o conformismo, aliado à resistência a mudanças,
penetra mais fundo e machuca bem mais.
Alguns textos acerca da cultura macua
que li afirmam que o futuro não está presente no seu modo de pensar. Vivem o
agora. Não posso concordar. Os que conseguem crescer, como, por exemplo, os
governantes, também os da cultura macua, costumam desmentir esta
afirmação. Dizem que este é um povo alegre.
É uma face da realidade. O fenômeno das bebedeiras é outra dimensão que também
fala da cultura. Talvez seja o reverso da aparente alegria.
Enfim, o quadro é ruim? Penso que não! Só entendo que não adianta tentar
cobrir o sol com a peneira. Aqui a realidade é esta: quando se consegue andar o
ritmo é lento. Uma coisa garanto: com a régua da racionalidade se consegue
entender bem pouco deste mundo local.
Elmar Luiz Sauer msf
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