Vivemos atiçados pelo Espírito e mergulhados em Cristo.
As palavras de Jesus no
evangelho de hoje fazem parte dos textos mais obscuros e difíceis do Novo
Testamento. Para entendê-las adequadamente, precisamos situá-las no contexto
literário no qual se encontram: o caminho de Jesus para Jerusalém. Estas frases
fazem parte da catequese com a qual Jesus explica aos discípulos sua missão, a
radicalidade da adesão ao projeto do Reino de Deus e as exigências para quem
adere à sua proposta de vida. Por detrás dessas palavras estão tanto a
experiência como algumas preocupações dos discípulos daquele tempo.
Para falar da sua missão, a
mesma que ele compartilha conosco, Jesus recorre a duas imagens: o fogo e o
batismo. Em algumas tradições de Israel o fogo é símbolo da intransigência de
Deus frente ao pecado. Alguns profetas usam a imagem do fogo para descrever a
ira de Deus (cf. Am 1,4; 2,5) ou o castigo imposto às nações pecadoras e ao
próprio Israel (cf. Is 30,27.30.33). Mas, ao mesmo tempo em que castiga, o fogo
também faz desaparecer o pecado (cf. Is 9,17-18; Jer 15,14; 17,4.27). Portanto,
o fogo é elemento de purificação e transformação (cf. Is 6,6; Eclo 2,5; Dan 3).
É neste horizonte que
podemos entender o sentido do fogo no trecho da pregação de Jesus que nos é
oferecida neste segundo domingo do mês vocacional. Jesus vem revelar a
santidade de Deus – destruir o egoísmo, a injustiça, a opressão que arruínam o
mundo – a fim de que surja o Mundo Novo, marcado pelo amor, pela partilha, pela
fraternidade e pela justiça. E essa transformação acontece, inicialmente,
através da Palavra e da ação de Jesus e, mais tarde, mediante a ação do
Espírito Santo que o Pai enviará aos discípulos/as. Ele é mesmo “pescador de
outros lagos”.
Quanto à imagem do batismo,
parece evidente que está referida à morte de Jesus. Em Mc 10,38 Jesus pergunta
a João e Tiago se eles estão dispostos a “beber do cálice” que Ele vai beber e
a “receber o batismo” que Ele vai receber. São imagens complementares, usadas
para descrever sua paixão e morte na cruz. Para que o fogo transformador e
purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da sua vida um dom de
amor. E isso ele começou a fazer na Galileia, ampliou na sua subida a Jerusalém
e completou na sua paixão e morte.
A paz é um dos dinamismos
essenciais da esperança messiânica do povo do povo de Israel. “Quero ouvir o
que o Senhor irá falar: é a paz que ele vai anunciar; a paz para o seu povo e
seus amigos, para os que voltam ao Senhor seu coração... A verdade e o amor se
encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 84/85). O hino messiânico do
sacerdote Zacarias saúda Jesus como aquele que vem “para dirigir os nossos
passos, guiando-os no caminho da paz” (Lc 1,79). Mas, se isso é verdade, então
por que Jesus diz que não veio trazer paz, mas divisão?
Dizendo que não veio trazer
ao mundo a paz mas a divisão, Jesus não está falando da meta da sua ação, mas
fazendo referência às reações das pessoas e grupos à sua pessoa e à sua
proposta. Ele veio trazer a paz, mas uma paz que é vida plena, vivida na
solidariedade e na coerência. A paz do reino de Deus, aquela que os verdadeiros/as
discípulos/as buscam como fome e sede, não pode ser tecida e sustentada com
meias tintas, com meias verdades, com jogos de equilíbrio que não perturbam
ninguém mas também não transformam nada. A paz de Jesus é uma “paz inquieta”.
O objetivo de Jesus não é
conservar o sistema de poder intacto, pactuar com uma paz que não questiona a
injustiça e a opressão, como as grandes redes de comunicação que não toleram
que a paz seja maculada pelas reivindicações de democracia e respeito ao povo.
Sua missão é incendiar o mundo, colocar em causa tudo aquilo oprime o povo e
escraviza a pessoa e a vida. O caminho da fé cristã não é um passeio fácil e
descomprometido, mas um percurso duro e difícil, que não se coaduna com
incoerências e concessões em nome de um pacifismo medroso e ingênuo.
Jesus de Nazaré, fogo de
amor que elimina a injustiça e purifica a ambiguidade dos nossos projetos e
ações: batiza com o teu Espírito todas as pessoas que acreditam em ti, todas
aquelas que chamas a se fazerem dom e serviço numa Igreja sinodal, constituída
por uma comunhão de carismas e ministérios. Ilumina especialmente os pais e
mães na exigente tarefa de iniciar seus filhos e filhas nos caminhos da paz
alicerçada na justiça. Ajuda-nos a manter os olhos fixos em ti, e a aprendermos
da tua compaixão com os pequenos. Amém! Assim seja!
Itacir
Brassiani msf
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