Nossa
Senhora da Salette: um caminho de conversão e de paz
(Iluminação: 1Timóteo 1,15-17; Salmo
112/113; Lucas 6,43-49)
1) A boa notícia
O que nos atrai e nos reúne como Igreja é a certeza
de que nela recebemos e vivemos uma Boa Notícia, um Evangelho: somos família de
Deus, membros de um corpo gracioso e generoso, irmãos que se acolhem na
igualdade e na fraternidade. Esse convite ressoa de um modo todo particular dos
lábios da Mãe de Jesus, nas montanhas francesas de La Salette: “Venham meus filhos e filhas, não tenham
medo... Eu tenho uma boa notícia para vocês!”
O apóstolo São Paulo viveu e anunciou essa Boa
Notícia como ninguém: “Segura e digna de
ser acolhida por todos é esta palavra: Cristo veio ao mundo para salvar os
pecadores. E eu sou o primeiro deles! Por isso encontrei misericórdia, para que
em mim, como primeiro, Cristo Jesus demonstrasse toda a grandeza de seu
coração”. Deus não é uma espécie de chefe ou patrão tirano, sempre pronto a
cobrar, acusar, ameaçar e despedir. Nossas dívidas, que são reais, foram
pregadas com Jesus na cruz e por ele pagas, até o último centavo.
Enraizado e alicerçado nessa experiência, Paulo
proclamou por onde passou, a quem conheceu e enquanto viveu que, em Cristo,
somos novas criaturas, gente nova. Por isso, entre nós e diante de Deus não há
diferença entre homem e mulher, entre cristão e pagão, entre escravo ou livro,
entre jovens e velhos. Somos todos irmãos e irmãs, pedras diferentes e
igualmente importantes na construção do templo vivo. Há 127 anos, a ordem de
Maria nos impele: “Vão, meus filhos e
filhas, e anunciem isso a todo o meu povo!”
Também a família é um dom de Deus e uma Boa
Notícia. É bom ter nascido, ter sido acolhido, acompanhado e educado no
ambiente de uma família. É bom contar por toda a vida com irmãos e irmãs, com
pais amorosos, com filhos agradecidos, com cunhados e cunhadas, sogros e
sogras, genros e noras, avós e netos. Eles não são um peso, mas um amparo! É
muito melhor ter alguém próximo, mesmo que sejam exigentes, que viver sozinho,
como se fôssemos um fragmento de nada perdido na imensidão de um mundo anônimo
e frio.
Por isso, cantamos agradecidos e proclamamos com
entusiasmo, com o Salmista: “Quem pode
comparar-se ao nosso Deus, que se inclina para olhar o céu e a terra? Levanta
da poeira o indigente e do lixo ele retira o pobrezinho”. A experiência de sermos amados e acolhidos nos faz sujeitos de amor e de
acolhida. No caminho de discípulos de Jesus somos transformados em
missionários.
2) A purificação da mente e do coração
Jesus Cristo não exige que sejamos bons como
condição para nos acolher e perdoar. Ele nos acolhe e nos perdoa porque ele é
bom, e não porque nós sejamos puros e corretos. Ele toma a iniciativa, vem ao
nosso encontro, nos acolhe sem impor ou exigir nada, se faz nosso irmão
primogênito, cabeça do corpo do qual somos membros.
Baseados nessa experiência e por ela dinamizados,
descobrimos a beleza do chamado a sermos semelhantes a ele: em tudo, amar e
servir a Deus e às criaturas nas quais ele está presente. Da graça brota a
missão. O amor recebido pede para ser amor compartilhado. E assim entramos num
caminho de conversão do modo de pensar e de agir, num caminho de purificação
dos pensamentos e dos sentimentos, num caminho de coerência entre aquilo que
dizemos crer e aquilo que fazemos.
Jesus nos diz que uma árvore boa produz frutos
bons, e uma árvore ruim produz frutos ruins. Somos ramos da videira que é
Jesus, e não galhos de um espinheiro ou de uma árvore venenosa. Nossas
relações, nossos projetos e nossas decisões revelam que tipo de árvore nós
somos. Se não é possível mudar a natureza de uma árvore, com a pessoa humana é
diferente: é possível mudar!
No evangelho de hoje, Jesus diz claramente: “A pessoa boa tira coisas boas do bom
tesouro do seu coração. Mas a pessoa má tira coisas más do seu mau
tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio”. Aquilo que
carregamos no coração ou na mente não vem do nada, nem nascem conosco. Somos nós que alimentamos nossos sentimentos
e informamos nossos pensamentos. Tiramos deles o que neles acolhemos e
guardamos. Somos responsáveis pelos nossos sentimentos e pelos nossos
pensamentos.
3) O caminho da paz
O caminho da paz certamente começa no nosso próprio
coração, nos nossos sentimentos e relacionamentos mais básicos. Precisamos
tomar consciência dos nossos sentimentos e dos nossos desejos e pensamentos.
Precisamos purificar nosso coração para que possamos ter os mesmos sentimentos
de Jesus Cristo. Precisamos exercitar a coerência entre o que escutamos, o que
sentimos, o que cremos e o que praticamos.
Jesus nos questiona duramente: “Por que me chamais: 'Senhor! Senhor!',
mas não fazeis o que eu digo? Vou mostrar-vos com quem se parece todo aquele
que vem a mim, ouve as minhas palavras e as põe em prática”. Quem
invoca o Senhor para vir em seu socorro e indicar seu caminho precisa pôr em
prática aquilo que ele nos diz. Sem isso, sua vida cristã carece de fundamento,
não se sustenta. Maria é eloquente na advertência que dirige aos videntes: “Se a vida é ferida e se há sofrimento, isso
é por causa de vocês. Mas se vocês se converterem, haverá pão em todas as mesas
e o traje de luto se transformará em vestes de festa”.
Por isso, o caminho que nos leva à paz na família e
na sociedade tem três pistas complementares, e todas precisam ser percorridas:
querer o bem dos outros e desejar-lhes a paz; dizer o bem aos outros e
pronunciar palavras que pacificam os ânimos; fazer o bem aos outros e promover
a paz por gestos e ações concretas. Em outras palavras: bem querer, bem dizer,
e bem fazer.
Querer o bem e desejar a paz: Precisamos cultivar, na nossa interioridade mais
profunda, o desejo de paz, o desejo de que todos vivam bem. E isso supõe
abandonar desejos doentios que não conseguem imaginar nada de bom para os
outros, que todos se lasquem, que lambam suas próprias feridas, que bebam do
seu próprio veneno; abandonar a intolerância que tende a contaminar mortalmente
nossos pensamentos e sentimentos. Esse desejo faz mal, antes de tudo, a quem o
cultiva.
Dizer o bem e anunciar a paz: A passagem do desejo e do sentimento à realidade
passa necessariamente pela linguagem, pela palavra e pelo gesto. É importante
cultivar e multiplicar palavras sinceras de estímulo e de apoio aos outros,
reconhecer a dignidade deles, expressar nossos desejos de “tudo de bom” ou
“sucesso”, de “Deus te abençoe”.
Fazer o bem e construir a paz: Como nos adverte Jesus, a vida e a fé não se
resumem a sentimentos nem a palavras. Ficar nisso significaria construir sobre
a areia. Nossas palavras e nossos desejos precisam se transformar em relações e
ações concretas que afirmem a dignidade e o valor dos outros, que diminuam a
intolerância, a competição e a agressividade, que criem um ambiente sadio no
qual cada criatura possa viver e se manifestar em sua originalidade. Significa
engajar-se nas lutas comunitárias pela justiça e pela paz.
4) A família, um espaço para o amor e a fé
O que constitui e mantém uma família não são os vínculos legais nem os
laços de sangue. O alicerce firme de uma família são os laços de afeto, de
acolhida e de comunhão que faz dela o espaço do perdão, da busca e da festa.
São essas relações que têm o poder mágico de transformar uma casa ou um
apartamento, e até um barraco sob o viaduto, em um lar. Ou de unir para sempre,
na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, pessoas, etnias e gerações
diferentes.
Como espaço relacional que nos acolhe em nossa fragilidade inicial e
final, a família é também um ambiente educativo, no qual aprendemos e
exercitamos os valores e princípios que, mais que a alfabetização ou a formação
profissional, nos fazem humanos, cidadãos e cristãos.
É também no ambiente familiar que desenvolvemos a
coerência entre o que sentimos, o que comunicamos e o que fazemos; que
articulamos o bem querer com o bem dizer e o bem fazer; que fazemos a passagem
da promessa à prática.
5) Construir a família sobre alicerce sólido
Invocamos hoje a Sagrada Família de Nazaré, pedindo que nos fortaleça no
amor e na fé. Em outras palavras, pedimos que ela nos ajude a construir nosso
núcleo familiar sobre o alicerce firme da coerência entre o que dizemos e o que
fazemos. E isso tem várias consequências.
A primeira, é que não podemos
nunca esquecer que somos o primeiro entre os pecadores, como diz Paulo; mas
pecadores perdoados por Jesus. A família é um grupo de pessoas “terrivelmente
humanas”, irremediavelmente pecadoras e falíveis, mas incondicionalmente
perdoadas. A família é o lugar onde vivemos o perdão!
A segunda, é que jamais
podemos desistir de purificar nosso coração e pacificar, pois dele podemos
tirar coisas boas e coisas más, palavras boas e palavras ruins, decisões boas e
decisões desastrosas. O diálogo, o confronto sincero e leal, a oração serena e
confiante, a meditação da Palavra de Deus, vão, pouco a pouco, educando,
formando e pacificando o nosso coração.
A terceira, é que o horizonte
da fé também nos ajuda a visualizar a vida familiar de um ponto de vista mais
amplo, libertando-a dos limites de sangue, de raça, de religião, de classe
social; e dos limites do passado ou do presente. Nossa família é a humanidade
inteira, somos todos irmãos e irmãs, família do Pai, corpo de Cristo. Nossa
família não começou com o casamento nos pais nem terminará quando os filhos
casarem e constituírem a sua família. Ela passa por diversas etapas, com
diferentes constituições, mas abrange diversas gerações, passadas e futuras. E
então é importante levar em conta a pergunta: que herança deixaremos para nossa
família, para as gerações que virão depois de nós?
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