Que nada no mundo separe um casal
sonhador!
(Gn
2,18-24; Sl 127/128; Hb 2,9-11; Mc 10,2-16)
Não é bom que a
pessoa humana viva sozinha: isso está inscrito no mais profundo do nosso ser. E
uma das formas de evitar o isolamento e de promover a socialização é o matrimônio.
Antes de ser um sacramento ou uma instituição, o matrimônio é uma realidade
antropológica. Duas pessoas, na maioria das vezes homem e mulher, sentem-se atraídos um pelo
outro e selam uniões que recebem diversos nomes, conforme a linguagem e a cultura
que as batiza, e diferem amplamente em
relação às obrigações recíprocas que estabelecem. Como toda relação humana,
também o matrimônio e a família estão permeados por ambivalências e tensões
entre o dom incondicional de si e a apropriação violenta do outro; entre o
cuidado do outro a ponto de esquecer-se de si e o fechamento em si mesmo a
ponto de esquecer o outro.
“E os dois formarão uma só carne.”
O matrimônio e
a família têm o amor e a comunhão como fundamento. As relações matrimoniais e
familiares são tecidas com os delicados fios da confiança. Etimologicamente, confiar significa fiar junto. É uma relação que parte da consciência dos próprios
limites, da necessidade de doar-se a alguém e do apreço pela bondade e pela capacidade
do outro. A comunhão nasce da dupla experiência da carência e da gratuidade.
Este dinamismo
que chamamos comunhão supõe sempre a
individualidade e a dignidade inegociável de cada pessoa. A simples fusão indiferenciada de duas pessoas,
assim como a negação ou a subordinação total de uma delas seriam
perdas impagáveis. A realidade do matrimônio pode ser descrita como ‘união sem
confusão e distinção sem separação’. É para que cada um seja o que é chamado a
ser – totalidade e infinito – que existe a aliança matrimonial.
A tradição
bíblica fala dessa força de comunhão
em linguagem poética. É como se marido e mulher fossem feitos da mesma carne e
sustentados pelos mesmos ossos. Descobrem-se atraídos um pelo outro, mas
desconhecem a origem desse dinamismo.Tudo começou quando eles dormiam!... As
raízes dessa atração descansam no silêncio obscuro e misterioso dos tempos, na
própria vontade de Deus. Homem e mulher descobrem-se companheiros e auxiliares,
e isso basta.
“Moisés permitiu escrever um atestado de
divórcio...”
Mas a história
concreta deste dinamismo que se torna vínculo é como uma rosa com espinhos
abundantes. Muito antes e para além da dolorosa tragédia da separação, conhecemos o exercício
violento da dominação do mais forte
sobre o/a mais fraco/a, a violência
física e moral, a exploração
despudorada e ilimitada do corpo do/a outro/a, a dependência costurada com os fios nada dourados da ameaça. As separações
que, infelizmente, crescem em número com o passar do tempo, são apenas uma das
faces da falência que pode se abater sobre as relações matrimoniais.
Quando os
fariseus, com o ardiloso objetivo de questionar a prática libertária de Jesus,
perguntam se a lei permite a um homem se
divorciar da sua mulher, querem fundamentalmente garantir os direitos de uma
das partes: a parte masculina, a mais forte. Todos sabiam o que dizia a
tradição: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se
depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente,
escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair
de casa em liberdade” (Dt 24,1).
“Foi
por causa da dureza do vosso coração...”
Jesus sabia que
a lei de Moisés era androcêntrica e
patriarcal. Para abandonar a mulher bastava não gostar mais dela ou
encontrar nela algo de inconveniente. Jesus não se deixa enredar pela
casuística farisaica e machista e situa a
lei no seu contexto. Diante da fraqueza e da maldade dos homens, Moisés tentou ao menos dar um salvo-conduto
à mulher abandonada pelo marido. “Foi por causa da dureza do coração de
vocês que Moisés escreveu esse mandamento.”
Jesus lembra
que este não é o projeto original e atual
de Deus. “Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher...
Eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não
deve separar.” A comunhão, selada pelo amor que reconhece e estabelece a dignidade
e a liberdade de cada um/a, é o maior tesouro que a família carrega e precisa
custodiar e testemunhar para o bem da humanidade. Esta é sua missão
irrenunciável.
Entretanto, Jesus reconhece que as separações são um
fato, sem ficar numa aceitação passiva, ingênua e condescendente. Neste
fato muitas vezes doloroso e trágico, as
responsabilidades e os direitos precisam ser divididos igualmente por ambas
as partes. Por um lado, Jesus radicaliza, dizendo que uma pessoa que se casa de
novo depois de estar separada comete adultério; por outro, contra a expectativa
dos fariseus, admite também à mulher o
direito de pedir o divórcio.
“O
que Deus uniu, o homem não separe!”
É correto repetir,
mesmo à exaustão, que nada e ninguém deve separar aqueles que Deus uniu
mediante o amor. Mas é preciso também
reconhecer que nunca deveríamos marcar com o selo da lei ou do sacramento
decisões imaturas e baseadas em tudo menos no amor. Às vezes tenho a
impressão de que, movidos por um comodismo irresponsável, criamos facilidades
que levam as pessoas a entrar numa gaiola inviolável de cujas chaves nos
apropriamos.
Não seria tempo
de superar o moralismo mórbido que pensa que a falência de um matrimônio sempre
se deve à maldade culpável de alguém? De admitir que existem casamentos que não
têm caráter sacramental nenhum, que são como cadáveres que esperam autópsia e
sepultura? Não seria urgente desmascarar o legalismo virulento que isola e
cristaliza uma frase de Jesus como lei imutável e relativiza o restante da vida
e da prática do mesmo Jesus? Quando Paulo diz que Jesus não se envergonha de
nos reconhecer como irmãos e irmãs, está se referendo apenas aos ‘bem-casados’?
“Algumas pessoas traziam crinaças para
que Jesus as tocasse.”
Depois de
responder aos fariseus e de aprofundar a questão com os discípulos, mesmo sob o
protesto desses, algumas crianças são apresentadas a Jesus. Ele aproveita a
oportunidade para sublinhar a dignidade
dos mais fracos diante das leis e dos mais fortes. A dominação e a exclusão
das crianças chega a irritar Jesus, que adverte: “Deixem as crianças virem a
mim!” E não podemos esquecer que as crianças são as vítimas da falência das
sadias relações familiares.
A psicologia nos
revela que, enquanto criança, todo ser humano passa por uma profunda
experiência de dependência, solidão e
isolamento, e é exposto a diversas formas de violência. Mesmo hoje e entre nós,
o exercício violento do poder é amplamente tolerado no domínio privado da
família. Mas, por causa da dependência e do amor pelos pais, a criança não é
capaz de perceber ou reagir.
Sem poder
expressar nosso protesto contra a humilhação, acabamos reproduzindo-a quando nos
tornamos adultos/as. De alguma forma, introjetamos e depois projetamos
socialmente o sofrimento e a indignação profunda, assim como o desprezo pelos mais
fracos que acumulamos desde a infância. Quando adultos, acabamos aceitando passivamente
ou promovendo ativamente práticas de opressão dos mais fortes sobre os mais fracos,
desforrando a humilhação vivida na infância.
“Quem não receber o reino de Deus como uma
criança, não entrará nele!”
Isso nos leva a
pensar muito sobre a relação entre adultos e crianças no interior da família.
Quando Jesus determina que ninguém impeça que as crianças se aproximem dele,
está enfatizando que Deus não despreza
nem violenta os mais fracos, como alguns o fazem. Como antes havia
defendido as mulheres diante do direito que pendia para o lado dos homens,
agora acolhe e abençoa as primeiras vítimas dos relacionamentos fracassados, mesmo
sem tratá-las como majestades intocáveis.
Jesus de Nazaré, irmão das vítimas defensor dignidade
de todo ser humano: também hoje, mulheres e crianças são dominadas e
desprezadas. Ajuda-nos a descobri-las como chave que dá acesso ao teu Reino, a
entender que ninguém se torna cidadão do te Reino a partir do centro ou de
cima, mas desde baixo e da periferia, acompanhando aqueles/as que não contam. Que
as crianças aprendam isso enquando sorvem o leite no seio da mãe e são
carregadas nos ombros de um pai. Confirma e sustenta nossas comunidades e famílias
cristãs nesta missão irrenunciável. Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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