quarta-feira, 3 de outubro de 2012

27° Domingo do Tempo Comum


Que nada no mundo separe um casal sonhador!
(Gn 2,18-24; Sl 127/128; Hb 2,9-11; Mc 10,2-16)

Não é bom que a pessoa humana viva sozinha: isso está inscrito no mais profundo do nosso ser. E uma das formas de evitar o isolamento e de promover a socialização é o matrimônio. Antes de ser um sacramento ou uma instituição, o matrimônio é uma realidade antropológica. Duas pessoas, na maioria das vezes  homem e mulher, sentem-se atraídos um pelo outro e selam uniões que recebem diversos nomes, conforme a linguagem e a cultura que as batiza,  e diferem amplamente em relação às obrigações recíprocas que estabelecem. Como toda relação humana, também o matrimônio e a família estão permeados por ambivalências e tensões entre o dom incondicional de si e a apropriação violenta do outro; entre o cuidado do outro a ponto de esquecer-se de si e o fechamento em si mesmo a ponto de esquecer o outro.
“E os dois formarão uma só carne.”
O matrimônio e a família têm o amor e a comunhão como fundamento. As relações matrimoniais e familiares são tecidas com os delicados fios da confiança. Etimologicamente, confiar significa fiar junto. É uma relação que parte da consciência dos próprios limites, da necessidade de doar-se a alguém e do apreço pela bondade e pela capacidade do outro. A comunhão nasce da dupla experiência da carência e da gratuidade.
Este dinamismo que chamamos comunhão supõe sempre a individualidade e a dignidade inegociável de cada pessoa. A simples fusão indiferenciada de duas pessoas, assim como a negação ou a subordinação total de uma delas seriam perdas impagáveis. A realidade do matrimônio pode ser descrita como ‘união sem confusão e distinção sem separação’. É para que cada um seja o que é chamado a ser – totalidade e infinito – que existe a aliança matrimonial.
A tradição bíblica fala dessa força de comunhão em linguagem poética. É como se marido e mulher fossem feitos da mesma carne e sustentados pelos mesmos ossos. Descobrem-se atraídos um pelo outro, mas desconhecem a origem desse dinamismo.Tudo começou quando eles dormiam!... As raízes dessa atração descansam no silêncio obscuro e misterioso dos tempos, na própria vontade de Deus. Homem e mulher descobrem-se companheiros e auxiliares, e isso basta.
 “Moisés permitiu escrever um atestado de divórcio...”
Mas a história concreta deste dinamismo que se torna vínculo é como uma rosa com espinhos abundantes. Muito antes e para além da dolorosa tragédia da separação, conhecemos o exercício violento da dominação do mais forte sobre o/a mais fraco/a, a violência física e moral, a exploração despudorada e ilimitada do corpo do/a outro/a, a dependência costurada com os fios nada dourados da ameaça. As separações que, infelizmente, crescem em número com o passar do tempo, são apenas uma das faces da falência que pode se abater sobre as relações matrimoniais.
Quando os fariseus, com o ardiloso objetivo de questionar a prática libertária de Jesus, perguntam  se a lei permite a um homem se divorciar da sua mulher, querem fundamentalmente garantir os direitos de uma das partes: a parte masculina, a mais forte. Todos sabiam o que dizia a tradição: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade” (Dt 24,1).
 “Foi por causa da dureza do vosso coração...”
Jesus sabia que a lei de Moisés era androcêntrica e patriarcal. Para abandonar a mulher bastava não gostar mais dela ou encontrar nela algo de inconveniente. Jesus não se deixa enredar pela casuística farisaica e machista e situa a lei no seu contexto. Diante da fraqueza e da maldade dos homens, Moisés tentou ao menos dar um salvo-conduto à mulher abandonada pelo marido. “Foi por causa da dureza do coração de vocês que Moisés escreveu esse mandamento.”
Jesus lembra que este não é o projeto original e atual de Deus. “Mas, desde o início da criação, Deus os fez homem e mulher... Eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.” A comunhão, selada pelo amor que reconhece e estabelece a dignidade e a liberdade de cada um/a, é o maior tesouro que a família carrega e precisa custodiar e testemunhar para o bem da humanidade. Esta é sua missão irrenunciável.
Entretanto, Jesus reconhece que as separações são um fato, sem ficar numa aceitação passiva, ingênua e condescendente. Neste fato muitas vezes doloroso e trágico, as responsabilidades e os direitos precisam ser divididos igualmente por ambas as partes. Por um lado, Jesus radicaliza, dizendo que uma pessoa que se casa de novo depois de estar separada comete adultério; por outro, contra a expectativa dos fariseus, admite também à mulher o direito de pedir o divórcio.
 “O que Deus uniu, o homem não separe!”
É correto repetir, mesmo à exaustão, que nada e ninguém deve separar aqueles que Deus uniu mediante o amor. Mas é preciso também reconhecer que nunca deveríamos marcar com o selo da lei ou do sacramento decisões imaturas e baseadas em tudo menos no amor. Às vezes tenho a impressão de que, movidos por um comodismo irresponsável, criamos facilidades que levam as pessoas a entrar numa gaiola inviolável de cujas chaves nos apropriamos.
Não seria tempo de superar o moralismo mórbido que pensa que a falência de um matrimônio sempre se deve à maldade culpável de alguém? De admitir que existem casamentos que não têm caráter sacramental nenhum, que são como cadáveres que esperam autópsia e sepultura? Não seria urgente desmascarar o legalismo virulento que isola e cristaliza uma frase de Jesus como lei imutável e relativiza o restante da vida e da prática do mesmo Jesus? Quando Paulo diz que Jesus não se envergonha de nos reconhecer como irmãos e irmãs, está se referendo apenas aos ‘bem-casados’?
“Algumas pessoas traziam crinaças para que Jesus as tocasse.”
Depois de responder aos fariseus e de aprofundar a questão com os discípulos, mesmo sob o protesto desses, algumas crianças são apresentadas a Jesus. Ele aproveita a oportunidade para sublinhar a dignidade dos mais fracos diante das leis e dos mais fortes. A dominação e a exclusão das crianças chega a irritar Jesus, que adverte: “Deixem as crianças virem a mim!” E não podemos esquecer que as crianças são as vítimas da falência das sadias relações familiares.
A psicologia nos revela que, enquanto criança, todo ser humano passa por uma profunda experiência de dependência,  solidão e isolamento, e é exposto a diversas formas de violência. Mesmo hoje e entre nós, o exercício violento do poder é amplamente tolerado no domínio privado da família. Mas, por causa da dependência e do amor pelos pais, a criança não é capaz de perceber ou reagir.
Sem poder expressar nosso protesto contra a humilhação, acabamos reproduzindo-a quando nos tornamos adultos/as. De alguma forma, introjetamos e depois projetamos socialmente o sofrimento e a indignação profunda, assim como o desprezo pelos mais fracos que acumulamos desde a infância. Quando adultos, acabamos aceitando passivamente ou promovendo ativamente práticas de opressão dos mais fortes sobre os mais fracos, desforrando a humilhação vivida na infância.
 “Quem não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele!”
Isso nos leva a pensar muito sobre a relação entre adultos e crianças no interior da família. Quando Jesus determina que ninguém impeça que as crianças se aproximem dele, está enfatizando que Deus não despreza nem violenta os mais fracos, como alguns o fazem. Como antes havia defendido as mulheres diante do direito que pendia para o lado dos homens, agora acolhe e abençoa as primeiras vítimas dos relacionamentos fracassados, mesmo sem tratá-las como majestades intocáveis.
Jesus de Nazaré, irmão das vítimas defensor dignidade de todo ser humano: também hoje, mulheres e crianças são dominadas e desprezadas. Ajuda-nos a descobri-las como chave que dá acesso ao teu Reino, a entender que ninguém se torna cidadão do te Reino a partir do centro ou de cima, mas desde baixo e da periferia, acompanhando aqueles/as que não contam. Que as crianças aprendam isso enquando sorvem o leite no seio da mãe e são carregadas nos ombros de um pai. Confirma e sustenta nossas comunidades e famílias cristãs nesta missão irrenunciável. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf 

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