Não há santidade fora do seguimento
de Jesus Cristo.
(Ap
7,2-4.9-14; Sl 23/24; 1Jo 3,1-3; Mt 5,1-12)
Hoje a festa é de
todos os santos e santas. Como poderíamos esquecer que a verdadeira santidade é
aquela que se manifesta na vida das pessoas que ousam sair do estreito limite
dos seus próprios interesses e se
aproximam solidariamente dos últimos; que tecem pacientemente os fios que fazem
do mundo inteiro uma única família; que vão aos rincões mais distantes para
levar a bandeira da paz; que são movidas por uma insaciável sede de justiça;
que choram as dores dos povos de todas as cores e provam o fel da violência da
perseguição; que transformam a terra pela mansidão...? Celebremos e festejemos
a alegria de participar de uma imensa caravana de homens e mulheres de todas as
raças, nações e línguas que nos precedem, nos acompanham e nos seguem. E
renovemos nosso desejo e compromisso de levar em nosso corpo as marcas de Jesus
Cristo.
“Gente de todas as nações, tribos, povos
e línguas...”
No último dia
30 recordávamos os 31 anos do assassinato de Santo Dias da Silva, líder cristão
e operário, e 463 anos da páscoa de Martinho Lutero, ex-monge católico e
reformador da Igreja. Dois homens sensíveis ao próprio tempo que, em diferentes
lugares e circunstâncias, e também por caminhos diversos, sonharam e lutaram por uma sociedade mais justa e uma Igreja mais
fiel a Jesus Cristo. Dois cristãos que tinham fome e sede de justiça e sofreram perseguições. Será que eles não
fazem parte da imensa multidão de servos/as de Deus, cujas frontes foram
marcadas com o sinal do Cordeiro?
A festa de
todos os santos faz memória dos/as santos/as esquecidos/as, daqueles/as que não
têm um dia especial, nem um nome conhecido, que gastaram a vida no anonimato e
cujos milagres não cabem nas estreitas regras canônicas; de gente como Sepé
Tiarajú, Padre Cícero, Dom Romero, e Ir. Adelaide; e mesmo de quem não rezou
pelo nosso catecismo, como Lutero, Luther King, Gandhi, Che Guevara e tantos
outros/as. Nesta festa celebramos a
memória daqueles/a que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja
no caminho certo, apesar das suas resistências e ambivalências.
“Desde já somos filhos/as de Deus...”
Mas a
celebração de todos os santos e santas não olha somente para o passado. É
oportunidade e provocação para refletir
sobre a vocação fundamental de todos os/as cristãos. É verdade que a
santidade é um caminho estreito e uma vocação exigente, mas isso não significa
que seja reservada a alguns grupos especiais de cristãos. Há exatos 50 anos o
Concílio Vaticano II proclamava de forma clara e inequívoca, contra a idéia então
predominante, que a santidade não é
privilégio dos sacerdotes e religiosos/as. Muito antes, a história já havia
comprovado o que foi proclamado solenemente.
Na passagem do
milênio, João Paulo II nos provocava a não se contentarmo-nos com pequenas
medidas, vôos rasantes, ideais nanicos, e pedia que aspirássemos nada menos e
nada mais que à santidade. A vocação que
é de todos/as precisa se transformar em desejo pessoal e em decisões e ações
concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos/as de Deus e já o
somos desde agora, mas o desafio é
crescer na identificação com Jesus Cristo, gravar no corpo e na mente as
marcas de Jesus Cristo. “Seremos semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que
um simples sentimento.
“Felizes os pobres no espírito...”
Jesus Cristo é
o verdadeiro e perfeito santo de Deus e, ao mesmo tempo, o caminho para a
santidade. Não há santidade à margem do
seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal seguimento seja implícito.
Trata-se então de refazer o caminho prático trilhado por Jesus: “amar como
Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar como Jesus pensou; viver como
Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é o caminho para que, no meio ou
no fim do dia e no no meio ou no fim da vida, sejamos felizes. O caminho para
santidade, percorrido por ele mesmo, são as bem-aventuranças.
Esta bela
mensagem que denominamos bem-aventuranças
apresenta os diversos sinais que indicam
claramente o caminho da santidade. Jesus não fala de oito grupos específicos
de pessoas, mas de oito características
daqueles/as que percorrem este caminho. Esta via sagrada começa com a pobreza e termina com a perseguição, o que
não representa um obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo – e no
presente! – dos pobres e dos perseguidos. A consolação para os aflitos, a terra
para os mansos, a saciedade para os famintos, a misericórdia para os
compassivos, a visão de Deus para os puros e a filiação divina para os
promotores da paz é promessa para o futuro, mas a alegria sem fim do Reino é experiência concreta dos pobres em
espírito e dos perseguidos já no tempo presente!
A santidade à
qual todos/as somos chamados/as tem a fisionomia do/a discípulo/a, do
despojamento solidário; o coração dos/as que se afligem e choram
compassivamente as dores dos outros; o ritmo inquieto dos/as que anseiam e pela
justiça plena e universal; o olhar terno da misericórdia; a transparência de
quem evita a duplicidade e as segundas intenções; a ousadia daqueles/as que
promovem a paz; a indestrutível alegria de quem assume o preço de ser livre e
libertador/a.
“Felizes os que têm fome e sede de
justiça...”
Diz-se que os/as
santos/as são beatos/as, mesmo que esse conceito não goze de muita estima entre
nós. Isso quer dizer que o caminho da
santidade e o caminho para a
felicidade coincidem. Santidade não rima com tristeza ou fechamento em si
mesmo/a, mas com felicidade e abertura aos outros. O caminho de Jesus Cristo, assim
como a vida e a espiritualidade cristãs, são propostas de uma felicidade que
coincide com a realização da mais profunda vocação humana e que, por isso, é
duradoura.
O caminho que
nos conduz à santidade feliz e à felicidade santa está longe de ter as
características da passividade ou do afastamento do mundo. Pelo contrário,
passa pelo empenhativo distanciamento dos interesses individuais ou dos grupos
fechados; pela partilha da dor e humilhação dos outros; pela mortificante e
vivificante fome e sede de justiça; pela prática perseverante da atenção aos mais
frágeis; pela superação das palavras e ações ambíguas; pela ativa semeadura da
paz em todas as relações; pela firmeza serena nas perseguições.
Passa longe do
Evangelho uma santidade que se resume em práticas de piedade. Está distante da
essência humana uma felicidade baseada no sucesso pessoal, indiferente à sorte
dos semelhantes. As pessoas que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos
são aquelas que vieram d’a grande tribulação’, que ‘lavaram suas vestes no
sangue do Cordeiro’, que recriaram sua ação libertadora, que encarnaram o
Evangelho no mundo e na própria vida. Felicidade
não significa ausência de dificuldades, mas realização plena e profunda do ser
humano. Mais que perfeição, santidade é perseverança no amor e no serviço.
“Seremos semelhantes a ele, porque o
veremos tal como ele é.”
Jesus é o
verdadeiro santo. A ele devemos o louvor, a glória, a sabedoria, a honra, o
poder, a força e a ação de graças. A santidade que brilha no rosto, que atua nas
mãos e pulsa no coração da multidão incontável que nos antecede e nos circunda
é fruto do Espírito de santidade e de verdade que Jesus Cristo derrama sobre a
comunidade que o segue. Se somos filhos/as e herdeiros/as, o somos por adoção e
graça, e não por mérito pessoal ou direito adquirido.
A provocação
pessoal de Jesus e o estímulo dessa multidão que caminha alegre e jubilosa vestida
de branco nos coloca e nos mantém no caminho da santidade. Que nossas roupas
marcadas por griffes que diferenciam e
hierarquizam, sujas e amarrotadas pela impureza do nosso pensar e pela ambigüidade
do nosso agir, se tornem semelhantes às vestes do Cordeiro no talhe, na cor e
no uso. Que nossas vestes sejam o hábito simples e surrado daqueles/as quem
servem, como as vestes de Jesus de Nazaré.
Deus pai e mãe, fonte de toda santidade e de todo bem.
Te pedimos a graça de permanecer sempre de pé diante do teu Filho, rodeados por
essa nuvem de testemunhas anônimas oriunda de todas as nações, tribos, raças e
línguas. Ajuda-nos a superar a doce tentação de separar, catalogar e hierarquizar
católicos e evangélicos, cristãos e não-cristãos. Fica conosco e caminha à
nossa frente, para que estejamos sempre prontos/as para a travessia e para a
luta. Que a incrível capacidade de sofrer e a inexplicável alegria em meio às
intermináveis lutas sejam nossas armas e nosso triunfo. E então estaremos vivendo
em comunhão com aqueles/as que louvam no céu e na terra. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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