é preciso conhecer as dores e aspirações da humanidade.
(Sb
7,7-11; Sl 89/90; Hb 4,12-13; Mc 10,17-30)
A fé é uma caminhada,
como é uma caminhada nossa eterna luta por um mundo melhor. É uma caminhada a
pé e, por isso, quanto menos bagagem, melhor. A estrada do seguimento de Jesus
Cristo, que conduz à realização mais profunda que um ser humano pode desejar,
tem seu preço. O caminho que nos leva ao Reino de Deus tem seu próprio pedágio,
e quem assume sua missão no mundo
precisa evitar a omissão e jamais
pedir demissão. Os/as mártires da
América Latina, cuja memória coletiva celebramos dia 11, Pe. João Bosco Burnier
à frente (+12.10.1976), que o digam! Longe de nos afastar das dores, tensões e
buscas da história, a fé nos leva ao seu próprio coração. E a Palavra de Deus –
que é sempre viva, eficaz e penetrante – denuncia e traz à luz as ambições
inconfessáveis que podem se esconder atrás de inocentes piedades e de projetos que querem se passar por
renovadores...
“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar
a vida eterna?”
Nossa caminhada
de fé se confunde com a nossa própria vida, e é difícil dizer quando começou.
Talvez com o próprio nascimento, quando nossos pais quiseram partilhar conosco
a fé que dava sentido à vida deles. Não é possível dizer com clareza se essa
caminhada exigiu rupturas, mudanças. Tivemos sim momentos mais fortes e
entusiastas e fases mais críticas e exigentes, mas ser cristão e ser cidadão
sempre nos pareceram coisas que quadram bem e caminham juntas.
Mas o evangelho
de Marcos nos lembra hoje que Jesus realiza aformação dos discípulos no caminho para Jerusalém, na estrada
que o leva ao enfrentamento com os poderes que oprimem. E este percurso
pedagógico exige mudanças, provoca rupturas e contradiz hábitos e
expectativas. O seguimento de Jesus não é um caminho linear que casa com
todo e qualquer interesse. Desde o começo, muitos são os/as que, tanto ontem
como hoje, voltam atrás, cheios/as de tristeza e pesar.
O personagem
anônimo apresentado pelo evangelho é paradigmático. Aparentemente não lhe falta
fervor e disposição religiosa: corre ao encontro de Jesus, ajoelha-se respeitosamente diante dele, chama-o de bom mestre. Ou
seria um entusiasta ingênuo e bajulador, semelhante a muitos/as de nós:
orgulhoso de sua tradição religiosa e de sua retidão moral, desejoso de
garantir a vida futura como tinha garantido o status presente, dado às aparências e aos gestos afetados?
“Desde jovem tenho observado todas essas
coisas...”
Jesus começa
jogando um pouco de água fria no fervor superficial e no orgulho oculto daquele
homem. “Só Deus é bom, e ninguém mais.” Depois, remete ao conhecido caminho da
religião: a estrada dos mandamentos. Cita cinco placas que proíbem passagens
perigosas e uma que mostra a direção obrigatória. O candidato a discípulo
responde, muito seguro de si: “Mestre, desde jovem tenho observado todas essas
coisas.” Refratário às estradas, ele sempre frequentara os genuflexórios...
Para aquele
homem piedoso típico, a fé não era um caminho a ser percorrido mas um porto
seguro e já alcançado. A fé era uma aquisição
garantida pela moeda da piedade superficial e das leis mesquinhas, centrada
nos próprios méritos e indiferente à sorte dos outros. Nem mesmo a referência
que Jesus faz ao princípio de não roubar consegue inquietá-lo. É a típica
pessoa de consciência absolutamente tranquila, imperturbável. Seu único desejo é
ser reconhecido e aplaudido como bom e irreprensível.
“Só te falta só uma coisa...”
Jesus entra
como um terremoto na tranquila viagem daquele postulante à santidade. Seu amor
por alguém qua parece tão correto não o impede de perceber uma grande lacuna: “Falta só uma coisa para você
fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu.
Depois, venha e siga-me.” Para Jesus, as
práticas de piedade e o cumprimento dos mandamentos não atingem sua meta
enquanto não nos abrem à partilha e à solidariedade e não nos colocam livres e
nus no caminho da cruz.
Em outras
palavras, a questão que Jesus coloca é a seguinte: qual é teu verdadeiro tesouro? Ele sabe que nosso coração está onde
colocamos aquilo que consideramos precioso e inegociável. A reação daquele crente
aparentemente exemplar revela o que intimamente considerava realmente
importante: o reconhecimento público como alguém perfeito e superior ao comuns
dos mortais; o capital que ele havia acumulado e que lhe conferia um poder nada
desprezível numa Palestina espoliada.
Jesus não nos
propõe simplesmente a pobreza, como se lhe agradasse um estilo de vida
pauperístico. O que ele pede é que nossos poucos ou muitos bens cumpram sua
finalidade legítima: atender solidariamente as necessidades das pessoas humanas,
e nada mais. No caminho para o Reino de Deus, ou na estrada que nos leva à
maturidade humana, há um pedágio do qual
não podemos fugir: em nome de Deus, os pobres estão ali cobrando o preço da
nossa passagem.
“E foi embora cheio de tristeza...”
Diante das
palavras de Jesus, o homem fica abatido e vai embora cheio de tristeza, porque
é muito rico. Seu desejo de uma vida humanamente madura e profunda não é tão
forte quanto o amor aos bens que acumula. Essa atitude faz Jesus murmurar desconsolado:
“Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” E acrescenta, para
escândalo dos/as discípulos/as de todos os tempos: “É mais fácil passar um
camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Para superar
este escândalo, tentamos, desde sempre, diminuir o tamanho do camelo ou
aumentar as dimensões do buraco da agulha. Mas o fato é que apego às riquezas e seguimento de Jesus
Cristo não casam. Quando colocamos nossa segurança nas bens parece-nos difícil
empreender travessias. A casa das nossas honras e conquistas nos parece mais
segura, e acabamos pensando que os pobres devem sair da miséria com suas
próprias forças e meios, cumpir suas obrigações e deixar de exigir direitos.
Vender os bens
e dar o dinheiro aos pobres é apenas uma
etapa, e prepara a opção decisiva:
seguir Jesus no enfrentamento das armas ideológicas da morte. “Depois, venha e
siga-me.” Os bens se transformam em problemas
quando sequestram a verdadeira liberdade. Nossa grande ilusão é pensar que
a honra e o poder nos livram necessidade de caminhar e nos levam automaticamente
ao ponto de chegada. Como nosso postulante à vida eterna, que preferiu a
segurança da casa à aventura da estrada.
“Amei a sabedoria mais que a saúde e a
beleza.”
Isso tudo nos desconcerta
e espanta. Temos a impressão de que Jesus exagera ou se engana redondamente.
Não seria possível harmonizar a piedade com o acúmulo de bens? Em vez de
acompanhar Jesus na subida a Jerusalém, não seria melhor convencê-lo a voltar a
Nazaré? Afinal, a vida eterna não estaria no cultivo da paz interior, na prática da meditação, na
harmonização dos pensamentos e sentimentos com a vibração da vida? Jesus ensina
que a santidade não se mostra no gesto de cair de joelhos diante dele, mas na
partilha dos bens e no seguimento dos seus passos.
Ainda hoje, a
idéia do despojamento solidário e da cruz provocam mais espanto que atração. E
a proposta do seguimento inquieta. Ser discípulo/a é começar sempre de novo,
mas o que a gente deseja é chegar ao final, receber o diploma. Seguir Jesus significa
levar adiante sua própria missão, e isso começa, como nos lembra Bento XVI na sua
mensagem para o mês missionário, com a leitura atenta da história e com a
identificação dos problemas, aspirações e esperanças da humanidade.
“Ensina-nos a contar os nosso dias e assim
teremos um coração sábio.”
Jesus de Nazaré, missionário enviado pelo Pai para nos
conduzir à vida plena! Ensina-nos a contar os nossos dias e avaliar
profundamente nossos desejos e seguranças, a fim de que tenhamos um coração livre e sábio.
Dá-nos uma mente sábia, que aprecie mais a vida que os bens e valorize mais a
liberdade que os prêmios das loterias e os cargos políticos. Desperta em nossas
comunidades e movimentos eclesiais a capacidade de ler responsavelmente a
história, identificando nela os problemas, aspirações e esperanças dos homens e
mulheres de hoje, especialmente dos pobres e oprimidios. Suscita e sustenta na
tua Igreja, que proclama um Ano da Fé e
convoca um Sínodo para repensar sua
prática de evengalização, a coragem e a liberdade feminina de Teresa de Avila,
o testemunho martirial de João Bosco Penido Burnier e o sonho missionário do
Pe. Berthier. Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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