"Quando as cercas caírem no chão e as mesas se encherem de pão..."
Há um preceito que não
está escrito na Constituição nem na Bíblia, mas é ensinado em lições, do berço
à sepultura. Esta lei diz que “cada um deve viver pra si e Deus se ocupará de
todos”. Uma variante afirma que quem “pode mais sempre chora menos”. Estes
princípios são assimilados tranquilamente na arena política, no sistema
econômico, e até no âmbito da religião. Deus acaba sendo uma espécie de
avalista da ambição individual, tanto na dimensão social como econômica. Poucos
se dão conta que isso contraria o Evangelho.
O Evangelho assinala
que, depois de ter provocado escândalo na sua própria terra e de ter tomado
conhecimento da prisão e do martírio de João Batista, Jesus parte para uma região
deserta e afastada. Ele toma distância dos lugares onde o poder mostra mais sua
ferocidade. Não quer entrar num jogo de cartas marcadas e assume conscientemente
a margem. Sente necessidade de outros ares e de buscar inspiração em utopias
mais divinamente enraizadas e mais humanamente concretizadas.
Sabendo disso, as
multidões cansadas e abatidas deixam as cidades e seguem Jesus à pé. Têm a
intuição de que é da periferia que pode nascer uma alternativa. Sabem que os
centros de poder são como uma figueira estéril e estão pavimentados com o
trabalho dos pobres e tintos de sangue inocente. Jesus vê a multidão e, movido
pela compaixão, cura, emancipa e reinsere na sociedade muitas pessoas doentes e
marginalizadas. Para ele, socorrer e libertar seu povo não é um apêndice da
missão, mas sua própria razão de ser!
No fim da longa
jornada, no entardecer das possibilidades de ajuda, os discípulos percebem a
fome do povo, mas não conseguem vislumbrar solução para este drama a não ser
dentro da lógica do império. Sem um plano alternativo, pedem que Jesus despeça
a multidão para que cada se vire. Querem entregar os famintos às frias leis do
mercado, bem ao estilo do “cada um pra si e Deus por todos”. A resposta de
Jesus é direta, e sua proposta abate mortalmente tanto o espiritualismo
escapista como o elitismo corrosivo dos discípulos.
“Eles não precisam ir
embora. Vocês é que têm de lhes dar de comer.” Os discípulos reagem e tentam
disfarçar o egoísmo elitista que os move sublinhando os exíguos recursos
disponíveis frente a tão grande necessidade. O que representariam cinco pães e
dois peixes para uma multidão de dez mil famintos? Mas está longe do pensamento
de Jesus uma Igreja feita apenas de doutrina e de ritos religiosos! Nada tem a
ver com ele uma comunidade que se compraz em lavar as mãos diante das tragédias
que se abatem sobre o povo. Ele não tolera instituições que entregam seus
membros à implacável lógica dos impérios! Ele sonha com o dia bonito em que “as
cercas caírem do chão e as mesas se encherem de pão”, como diz a canção.
“Tragam isso aqui”,
determina o Mestre. Ele sabe, e quer deixar bem claro a quem o segue, que a
saída não é nem cada um pensar em pra si, nem considerar o povo faminto um
simples objeto de caridade. Do ponto de vista de Jesus e do seu Evangelho, o
povo é soberano e as autoridades religiosas e políticas devem estar a seu
serviço. E é claro que não se trata de povos nacionais, mas do único povo de
Deus, pois, para os cristãos, as nações modernas são realidades fictícias e, às
vezes, violentas, cujos confins foram traçados com lanças e baionetas. Não é
cristão um amor que se preocupa apenas com a vida dos compatriotas!
O alimento suficiente
para saciar a multidão faminta aparece quando Jesus assume o protagonismo e os
discípulos colaboram com ele. Se ele deixasse a solução às leis do mercado
teríamos assistido à catástrofe de um povo, ao cinismo da religião e ao
enriquecimento dos aproveitadores. Hoje, o cumprimento da ordem “deem vocês
mesmos de comer” começa com a adoção de um estilo de vida sóbria pelos setores
sociais e povos ricos e com a erradicação da exploração comercial dos países
ricos sobre os pobres. Mas deve prosseguir na conquista da soberania alimentar
dos povos e na denúncia dos sistemas econômicos injustos, que sempre encontram
defensores e servidores, inclusive em nome do combate à corrupção.
Deus, pai justo e mãe compassiva! Tu queres que
ninguém fique fora da festa da vida, e que nossa felicidade não seja o aumento da
posse e do consumo de bens mas a redução dos desejos e necessidades. Suscita e
sustenta em nós a mesma compaixão que moveu Jesus no cuidado aos doentes, na
acolhida aos marginalizados, na libertação dos oprimidos e no socorro aos
famintos. Ensina aos nossos ministros ordenados e às nossas comunidades a responsabilidade
de ensaiar formas de vida mais sóbrias e solidárias, sem medo de, diante da
fome que não pode esperar, repartir o pão com quem tem fome. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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