Natal: comemoramos, mas não entendemos
Conhecemos
a origem da festa cristã do Natal. Ela remonta aos tempos da chegada do
cristianismo à capital do império romano. Ao chegar a Roma os cristãos
encontram, por volta do dia 25 de dezembro, uma festa ao deus Sol. Tratava-se
de uma celebração para comemorar o solstício de inverno do polo norte. A partir
dessa data os dias começavam a ser mais longos, o frio ia diminuindo, o calor
aumentando. A terra ia ficando aquecida e favorecendo o plantio. Numa tentativa
de inculturação, o cristianismo vai substituindo essa festa pela comemoração do
nascimento de Jesus, considerado a “luz do mundo”, ou “a luz da vida” (Jo
8,12).
Embora
significativa, a festa do Natal não entrou de imediato no calendário litúrgico
cristão, voltado inicialmente, e quase que exclusivamente, para a celebração da
Páscoa, memorial da morte e da ressurreição de Jesus. Com o passar do tempo a
celebração do nascimento de Jesus foi sendo misturada com a comemoração de São
Nicolau, santo que teria vivido no IV século, um velhinho bondoso que, segundo
a tradição, distribuía esmolas e presentes para as pessoas, especialmente para
as crianças. Aos poucos acontece a “noelização” do Natal, ou seja, a
substituição do Menino Jesus por Papai Noel. A comemoração do nascimento do Menino Jesus cede lugar ao velhinho de
barbas brancas que, na noite de Natal, sai deslizando pela neve com o seu
trenó, a fim de levar presentes para as pessoas.
De
acordo com uma tradição, São Francisco de Assis teria feito uma tentativa de
resgate do significado cristão do Natal, armando o primeiro presépio da história. Ele queria
expressar plasticamente a singeleza, a pobreza, a ternura e a humildade do
Filho de Deus. Buscava, assim, retornar às fontes evangélicas e dar outro
sentido àquela celebração. Mas, também depois disso, a celebração do Natal não
conseguiu encarnar na prática o que ela devia significar. Os presépios se
sofisticaram e aquela que deveria ser a festa da singeleza do nascimento do Filho
de Deus virou uma comemoração qualquer, praticamente desvestida do seu sentido
cristão mais profundo.
Com
a chegada do capitalismo deu-se a comercialização
do Natal. Este passou a ser uma festa do consumo.
Houve um distanciamento total do Menino Jesus, o qual foi substituído por
personagens e símbolos insignificantes e sem sentido. No hospital onde estou
fazendo tratamento, por exemplo, já foi feita a decoração do Natal. Não há
nenhum símbolo e nenhuma figura que lembre aquela criança que, segundo o evangelho
de Lucas, teria nascido pobre, numa manjedoura, na periferia de uma cidade
periférica da periferia do império romano. Uma rede de lojas aqui do Distrito
Federal está fazendo uma propaganda intitulada “Natal sem estresse”. As pessoas
podem ficar despreocupadas, pois essa rede possui mais de cinco mil produtos à
disposição da clientela e ninguém precisa ficar estressado, pois as lojas vão
garantir produtos em quantidade suficiente para todos fazerem suas compras
natalinas.
Ora,
tudo isso mostra que nós celebramos o Natal, mas não entendemos nada da sua
mensagem cristã. Num país como o Brasil, onde os que se declaram cristãos
chegam a quase 90% da população, isso é muito triste e revela a fragilidade
desse cristianismo, incapaz de entender e, sobretudo, de viver de sua essência.
Ao mesmo tempo revela a responsabilidade desses cristãos, particularmente de
suas lideranças, diante do que acontece. De fato, a comercialização do Natal é
apenas um dos aspectos de um cristianismo que, em nosso país, foi perdendo
progressivamente a sua capacidade profética de sacudir as consciências,
principalmente dos próprios cristãos.
Recentemente
o teólogo Renold Blank, através de seu livro Deus e sua criação (Paulus, 2013), nos ajudou a repensar o Natal
numa perspectiva mais cristã, ou seja, mais evangélica. Partindo do dado
fundamental da fé, o qual afirma que, através de sua encarnação, Jesus nos
revelou a verdadeira identidade de Deus (Jo 14,9), Blank nos convida a refazer
nosso modo de celebrar o Natal. Diz ele: “Somente na religião cristã veneramos
um Deus que se revela na pequenez de uma criança, em sua impotência e fraqueza,
mas também em sua carência de amor. Costumes natalinos desenvolvidos ao longo
de séculos expressaram esse saber em imagens que são, em parte, folclóricas.
Todas elas, porém, permaneceram, por assim dizer, na superfície do evento” (p.
189).
Eis
a melhor definição para a atual celebração natalina, mesmo por parte dos
cristãos: pura superficialidade. E
isso por várias razões. Em primeiro lugar porque, ao fomentar o consumo, esse
tipo de celebração se distancia daquele que é a razão de sua existência, o Menino Jesus, nascido pobre e simples na
periferia de uma cidade insignificante. Em segundo lugar, porque ao se
apresentar como uma criança totalmente desprotegida, necessitada de tudo,
inclusive de carinho e de amor, o Natal deveria revelar a verdadeira face de
Deus. Não um Deus onipotente, poderoso, castigador, dominador, mas um Deus
humilde e simples e que quer ser venerado assim. Mas os cristãos não entenderam
até hoje esta lição do Natal e continuam adorando um Deus distante, poderoso e
até mesmo aterrorizador. Um Deus general, controlador, fiscal, e que fica
cobrando de nós um monte de dívidas. Por fim, o Natal se tornou uma festa
superficial porque não afeta os nossos relacionamentos.
Há troca de presentes, congratulações, lágrimas etc., mas deixamos tudo como
está. Como cristãos não nos importamos como o que está acontecendo. Não nos
importamos com as injustiças, com a miséria, com as desigualdades, com os males
que afetam uma sociedade, que se orgulha de ser cristã.
Blank
afirma que no Natal, “Deus mostra que ele não está interessado no poder. Em vez
disso, ele vai ao encontro dos seres humanos no sorriso de uma criança. De uma
criança, porém, ninguém tem medo [...]. Um Deus que se manifesta na forma de
uma criança necessitada de proteção, esse Deus pode ser amado porque não
precisamos ter medo dele” (p. 190-191). Disso se conclui que o verdadeiro espírito
de Natal não está nas lojas, nas ceias e nem mesmo nas celebrações sofisticadas
ou, às vezes, tediosas que se fazem nas igrejas. Celebrar o Natal de verdade,
dentro da dinâmica da encarnação de Jesus, é amar um Deus que rejeitou todas as
formas de poder e de dominação. Mas é, acima de tudo, renunciar a todos os
“mecanismos do poder, seja no plano político, seja no plano religioso ou
privado. Diante de uma história secular de poder do cristianismo, isso deve ser
ressaltado com toda clareza” (p. 191-192).
O
Natal nos revela que Deus não quer ser visto, venerado, adorado como rei
potente, todo-poderoso, vingativo, castigador, rico e amigo dos ricos. Ele quer
ser acolhido, amado, adorado como um Deus
fraco, que escolhe a fraqueza e os fracos; que escolhe o caminho da
insignificância, da pequenez, da pobreza. Ele quer ser visto pelos cristãos e
pelas cristãs como o Deus dos pobres, dos pequenos, dos humildes e dos simples.
Um Deus-criança que suscita ternura,
desperta carinho, alegria e do qual não é preciso ter medo.
O
fato de ainda continuarmos vendo Deus de outra forma, e vivendo de maneira
diferente daquela através da qual ele se manifestou, prova que não entendemos
nada do Natal. Celebramos, gastamos, enfeitamos ruas e casas, mas não
percebemos a mensagem essencial desta
festa. Revela a nossa responsabilidade de cristãos e de cristãs em reverter
essa situação. Precisamos retornar com urgência ao espírito original do Natal.
Àquele verdadeiro espírito que o evangelista Lucas quis nos comunicar quando registrou
que o Filho de Deus foi colocado “na manjedoura, pois não havia lugar para eles
dentro de casa” (Lc 2,7).
Precisamos
fazer o Natal voltar a ser a festa do nascimento do Menino Jesus. Precisamos desvestir o Natal de toda caricatura
neoliberal, comercial e exploradora. Os cristãos e as cristãs precisam voltar a
ser discípulos do menino de Belém. Um
bebê pobre, indefeso, carente, pequeno e bem humano. Precisam mudar suas
concepções e suas experiências do Deus de Jesus. Melhor dizendo, os cristãos e
as cristãs precisam mudar de deus, deixando de ser idólatras, adoradores de um
falso deus. Nós, como o menino de Belém, precisamos aprender a amar de verdade,
pois somente o amor verdadeiro revoluciona o espírito do Natal. É claro que
isso não é fácil, pois, “de repente fica menos fácil cantar os antigos hinos de
Natal, sem começar ao mesmo tempo a amar as pessoas, abrir-lhes o coração e
responder suas perguntas com amor” (Blank, p. 195).
Não
podemos celebrar o Natal sem responder às grandes perguntas que a humanidade de
nossos dias, especialmente o mundo dos pobres e excluídos, coloca para o
cristianismo. Não há outro caminho para devolver ao Natal o seu espírito
cristão senão aquele de um Deus incômodo que nos desestabiliza por completo ao
se apresentar como uma criança que “toma inequivocamente partido pelos escravos
e contra o sistema de dominação político-econômico” (Blank, p. 199). Um Deus
que, na manjedoura de Belém, opta decididamente pelos derrotados, pelos
excluídos e pelos marginalizados.
José Lisboa Moreira de Oliveira
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