O desejo de Maria é que o povo
brasileiro viva bem.
(Est 5,1-2; 7,2-3; Sl 44/45; Ap 12,1-16; Jo
2,1-11)
Nesta segunda
semana do mês dedicado à animação missionária das comunidades cristãs temos a
esperada festa de Nossa Senhora Aparecida, a Mãe Negra de um país multicultural
mas não totalmente livre da praga do racismo. Mergulhemos no acontecimento da
Mãe Aparecida e deixemo-nos iluminar e orientar pela Palavra de Deus, dispostos
a acolher o que ele quer nos ensinar sobre a missão nos tempos atuais. Não seria tempo de proclamar de muitos modos
que as talhas de pedra do sistema néo-liberal estão vazias e a festa terminou
antes do tempo? Que o cumprimento cego das leis de mercado favorece apenas
a festa ostensiva de alguns à custa da miséria de muitos? Que os migrantes,
especialmente os negros, são barrados nas fronteiras dos países que no passado
invadiram suas terras e os trataram como mercadoria? Que não há futuro fora da
solidariedade fraterna?
“E a mãe de Jesus estava aí...”
O evangelista João
nos lembra discretamente que naquele tempo houve uma festa de casamento, para a
qual Jesus, sua mãe e seus discípulos estavam convidados. É uma lembrança da
presença discreta e anônima de Jesus, mediante seu Espírito, nas idas e vindas,
subidas e descidas da caminhada da humanidade. E a afirmação da presença
igualmente discreta e maternalmente ativa de Maria nos caminhos e descaminhos
dos filhos e filhas de Deus.
Ao longo da
história do cristianismo o povo de Deus soube captar essa presença em inúmeros
momentos e numa enorme diversidade de cores. E descobriu os traços de uma
mulher que se apresenta como discípula
do próprio filho, como mãe da
comunidade fiel, como companheira de
viagem, como consoladora dos
aflitos, como conselheira admirável, como estrela
de uma manhã radiosa, como arca da
aliança entre povos divididos, como mediadora
de um Deus que age sempre com gratuidade.
É importante
sublinhar que essa presença de Maria não é de modo nenhum externa à comunidade
eclesial. Ela não está nem fora e nem acima da Igreja. O lugar de Maria é junto aos discípulos e discípulas, escutando e
ensinando, precedendo e acompanhando, lutando e celebrando, caminhando com seus
passos lentos mas sempre firmes, mesmo quando os ventos (eclesiais) sopram noutra
direção... Tanto quanto mãe da Igreja, Maria é seu símbolo mais completo e
eloquente.
“Eles não têm mais vinho!”
Os
supermercados abarrotados de mercadorias e as vitrines cheias de novidades sedutoras
querem nos convencer de que o mundo vai muito bem. As festas e feiras que se
multiplicam reforçam a impressão de que nada falta a ninguém. Corremos o risco
de acreditar que o Mercado é o bom pastor, e que a quem se entrega a ele nada
faltará. Embriagados pela sede de consumo e pela fome de lucro, os sacerdotes do sistema se imaginam
caminhando por prados e campinas verdejantes, longe do grito dos oprimidos e da
poluição que destrói o mundo em ritmo galopante.
Maria gosta de
ser discreta, jamais indiferente. Mesmo quando ninguém vê ou não quer ver que
falta vinho e de vida, ela ousa falar: “Eles não têm mais vinho...” Maria vê que nem todos têm acesso à festa da
vida e compreende que a orgia dos opressores e indiferentes não pode durar para
sempre. Somente a misericórdia de Deus deve se estender de geração em
geração e animar a festa dos pequenos. Maria nos ensina que, por mais chato que
seja, faz parte da tarefa dos
missionários/as alertar para a falência dos sistemas que confiam cegamente na
concorrência e no acúmulo e denunciar a carência
desumana à qual grandes multidões estão acorrentadas.
Como mãe e
intercessora, Maria se dirige a Jesus e pede sua intervenção. E nem sempre faz
isso usando palavras. O povo brasileiro soube entender que, ao assumir a cor escura dos corpos dos
negros escravizados como máquinas de produção, Maria estava gritando a
dignidade dos escravos e denunciando a violência dos sistema escravagista. Quando até os discípulos do seu Filho
escravizavam os negros em seus templos e fazendas, Maria se fez presente na dor
e na cor própria deles. Esse foi seu grito profético para dizer que faltava
vinho e o sangue corria em benefício de uns poucos.
“Façam
o que ele mandar...”
Como
missionários e missionárias, podemos aprender com Maria. São reais os riscos de
pensar e desenvolver a missão como um projeto de tutela de um povo considerado
sempre menor e inferior; ou como uma empresa colonialista ou desenvolvimentista
que confunde modernização técnica com humanização; ou ainda como um projeto
doutrinal e fundamentalista, centrado na Igreja e nas suas leis e tradições,
com o objetivo central de expandir a Igreja e não de servir ao povo.
Maria nos
ensina que precisamos basicamente lembrar
ao povo que a única alternativa para as falências e carências da nossa
sociedade é fazer o que Jesus pede. O caminho da liberdade pessoal e social
é a palavra-ação de Jesus Cristo: a abertura à intervenção criadora de Deus; a
confiança na própria dignidade e na própria capacidade; a solidariedade e a
colaboração; a convicção de que tudo aquilo que é feito em vista do bem dos
outros produz seus frutos, cedo ou tarde.
“Façam o que
ele mandar...” É isso os missionários/as precisamos lembrar e relembrar ao
mundo e à Igreja. Não podemos esquecer, porém, de cumprir pessoalmente esse
mandato de Maria. Sabemo-nos radicalmente comprometidos com o caminho trilhado
e indicado pelo Mestre, com sua Palavra de vida e, por isso, não nos preocupamos
apenas em anunciar, mas também em testemunhar com a vida aquilo que cremos
e propomos e ajudar a realizá-lo com as próprias mãos.
“O meu desejo é a vida do meu povo...”
Sempre me
intrigaram as palavras do Salmo 44/45, aplicadas a Maria: “Esqueça o seu povo e
a casa do seu pai, pois o rei se apaixonou pela sua beleza.” Não me soa bem a ordem de esquecer o próprio
povo, renegar as próprias origens. Mas, no horizonte da espiritualidade
missionária, estas palavras adquirem sentido. Quem tem entranhas missionárias é capaz de tomar distância da casa e
dos apelos dos pais e dos filhos, da comunidade e da etnia para fazer-se
próximo daqueles que estão longe, irmão ou irmã dos últimos. É isso que nos
ensina Maria em sua manifestação nas águas do rio Parnaíba.
A atitude da
rainha Ester é o protótipo desenvolvido por Maria, modelo e inspiração para
os/as missionários/as. O rei lhe convidara a pedir aquilo que quisesse, e ele
lhe daria, mesmo que fosse a metade do reino. Ester responde decidamente: “O
meu desejo é a vida do meu povo!” Nem honra, nem sucesso, nem riqueza, nem vida
longa para si mesma, nem bênção para os grandes: respeito à dignidade e possibilidades de vida abundante para o povo.
Para os/as missionários/as vida do povo deve estar acima tudo, mesmo acima do
crescimento da Igreja e dos seus legítimos direitos frente aos Estados.
“Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe,
seus irmãos e seus discípulos.”
Maria pede e os
servidores fazem o que Jesus solicita, mesmo sem compreender o sentido e até
desconfiando da eficácia do que fazem. O resultado é vinho bom e abundante,
fraternidade e alegria duradouras, o reino de Deus chegando antecipadamente em
forma de sacramento. Assim, a missão tem o
objetivo ajudar os povos a descobrirem seus próprios recursos e possibilidades
de gerar vida para todas as criaturas e fazê-la sempre mais abundante e boa.
A narração de
São João termina lembrando que esse foi o primeiro sinal realizado por Jesus e
que, em seguida, ele desce para Cafarnaum com sua mãe, seus familiares e seus
discípulos. É importante observar que nesse momento importante da missão de
Jesus estão juntos a comunidade e a
família de Jesus. Fica a impressão de que os/as discípulos/as e missionários/as
de Jesus fazem parte da sua família e precisam fazer o possível para envolver
seus próprios familiares nessa aventura de fé.
“Jesus desceu para Cafarnaum...”
Deus, pai e mãe, que em Maria revelaste tua ternura
feminina e materna. Guia e acompanha tua Igreja e cada um/a de nós na subida
para a festa da Aliança e na descida para a Cafarnaum do nosso cotidiano. Abre
nossos ouvidos à tua e nossa Mãe, que, atenta às dores e necessidades da
humanidade, nos pede para ir além dos
terços e missas e fazer o que seu filho nos ordena. Ajuda-nos a perceber os
pequenos e promissores sinais do teu reino na concretude incontornável da vida
cotidiana. Lembra ao povo brasileiro que, mais que
preparar a Copa do Mundo de 2014 ou as Olimpiadas de 2016, é preciso construir
um país sem miséria e um povo livre e soberano. Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
Um comentário:
Belo texto! Como sempre suas reflexões são profundas e inspiadoras. Continue sempre com este espírito diante de uma sociedade cada vez mais desumana e, uma Igreja profundamente fria e, na minha experiência atual, sem nenhum sinal de maternidade. Forte abraço!
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