Afinal, quem é o papa?
O anúncio da renúncia de Bento XVI
colheu o mundo de surpresa. Afinal de contas há séculos não se via coisa igual.
A mídia sensacionalista deitou e rolou, falando de bobagens e aludindo a
futricas palacianas vaticanas. A mídia católica, meio abobalhada, não sabia
muito que dizer. Chamou alguns “embatinados” para falarem, mas estes senhores
de clergyman pouco acrescentaram ao debate sério.
Neste multiplicar-se de palavras
desnecessárias, faltam algumas perguntas básicas: “Quem é o papa? O que ele faz
ou deveria fazer?”. Tais perguntas não podem faltar, pois haveria o risco de
concentramos nossas falas num personagem fictício chamado “papa” e não na
missão que ele deve exercer com humildade e responsabilidade, seguindo as
pegadas do Mestre Jesus.
Antes de tudo é preciso dizer que o
papa é o bispo de Roma. Ele é papa porque é bispo de Roma. Portanto, antes
de qualquer outra coisa o papa deve ser o bispo de uma porção do povo de Deus,
da ekklesía que se reúne em Roma por
convocação da Trindade. Os cardeais, juridicamente considerados membros do
clero romano, escolhem o bispo da diocese de Roma. Neste sentido, a preocupação
primeira deveria ser a de escolher alguém em condições de ser sacramento de
Cristo Pastor (Jo 10,11; Mt 9,36) na Igreja local de Roma. Não poderia ser papa
alguém que não servisse para ser bispo de Roma.
Feito isso, é preciso cuidar do segundo
aspecto. Por uma tradição que foi se firmando desde o final do primeiro século
da era cristã, a ekklesía, ou seja, a
comunidade formada pelos “santos e diletos de Deus que estão em Roma” (Rm 1,7)
foi sendo consultada para ajudar a dirimir questões que surgiam nas outras
Igrejas locais ou entre outras Igrejas locais. Tal tradição se forma a partir da
convicção de que a Igreja que está em Roma detém a “martyria apostolorum”, ou
seja, o testemunho do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. Como sempre se
acreditou que Pedro e Paulo foram martirizados em Roma, as demais Igrejas
locais passaram a acreditar que a Igreja de Roma, como testemunha da firmeza e
da coragem destas “colunas da Igreja”, podia ajudá-las a resolver questões que
elas mesmas não conseguiam resolver sozinhas. Nasce, assim, o costume de
consultar a Igreja romana e de acreditar que a palavra da ekklesía de Roma seria a palavra final sobre o assunto.
Note-se bem que a consulta não era
feita ao papa, que naquela época ainda não existia como figura hierárquica, mas
à Igreja de Roma, a qual, depois de ouvir a sua assembleia convocada (ekklesía),
encarregava o seu bispo (epíscopo) de comunicar às Igrejas locais interessadas a
decisão final sobre o assunto. A partir do IV século, quando o cristianismo
passa a ser religião de Estado e, aos poucos, se instaura uma forte
hierarquização no interior da Igreja, a consulta vai deixando de ser à ekklesía
de Roma e se concentrando na pessoa do seu bispo. A comunidade de Roma não é
mais ouvida. A consulta é dirigida diretamente ao seu bispo. Na Idade Média se
caminha para o absolutismo eclesiástico e a figura do bispo de Roma vai
adquirindo contornos cada vez mais autoritários. Em certo momento da história,
este absolutismo chega a seu auge e o bispo de Roma se torna “papa” (pai) de
todos e, pouco depois, chefe absoluto da Igreja, a ponto de tornar-se um super-bispo,
acima de todos os outros bispos, com poderes absolutos sobre tudo e sobre todos
na Igreja.
De repente o bispo de Roma, de mero
mensageiro das decisões tomadas no âmbito da assembléia reunida da Igreja
romana, passa a ser o único juiz, legislador, executor e detentor absoluto de
poderes, não podendo ser questionado e nem interpelado por ninguém. Chega-se
assim, especialmente por obra de Gregório VII, à monarquia papal. Mais tarde o papa Bonifácio VIII, por meio da bula
Unam Sancta (1303) define a
supremacia do papal, o qual está acima de todos os outros poderes, acima de
tudo e de todos.
É preciso, pois, voltar às origens e
recuperar a identidade original do papa como bispo de Roma e como representante
legítimo da primazia da Igreja romana sobre as demais Igrejas, no sentido que
foi explicado antes. Para tanto é indispensável e urgente purificar a figura
papal de todos os excessos e impurezas que foram se acumulando ao longo dos
séculos, especialmente durante a Idade Média. É preciso, repito, antes de tudo
pensar no bispo da Igreja de Roma e, a partir disso, no serviço que ele deve
exercer para toda a Igreja. Para tanto é urgentíssimo um processo de
descentralização do poder na Igreja, dando mais espaço para as Igrejas locais e
para as Conferências Episcopais, voltando assim a mais genuína tradição.
Teologicamente falando, e considerando
as exigências do mundo atual, não tem mais sentido que o papa e sua cúria detenham
a palavra final sobre tudo e sobre todas as coisas na Igreja. No princípio não
foi assim. Isso significa que é preciso rever com urgência a atual estrutura
burocrática e paquidermiana da Cúria Romana. O estado do Vaticano, sua pesada Secretaria
de Estado, suas luxuosas e custosas Nunciaturas Apostólicas precisam
desaparecer por completo ou serem reduzidos drasticamente. E a quem acha que a
Igreja não pode evangelizar sem tal estrutura deve-se lembrar com clareza e
determinação o dito de Jesus, segundo o qual a organização na comunidade cristã
não pode ser mera imitação dos poderes e dos tiranos deste mundo (Mc 10,42-44).
João Paulo II, na encíclica Ut unum sint, de 25 de maio de 1995,
afirmava que a missão do bispo de Roma de presidir na caridade toda a Igreja
“deve realizar-se sempre na comunhão com o conjunto dos bispos e não isolado dele”
(nº 95). Por essa razão, afirmava ainda ser preciso “encontrar uma forma de
exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua
missão, se abra a uma situação nova”. E concluía sua reflexão, pedido ao
Espírito de Deus que iluminasse pastores e teólogos para que pudessem juntos
encontrar formas novas para a realização da missão do papa.
A eleição do próximo papa, após a
renúncia de Bento XVI, se apresenta como uma oportunidade para que os cardeais
conversem seriamente sobre o que é mesmo essencial
na missão do bispo de Roma. Uma volta às origens, a mais genuína tradição
eclesial, é o melhor caminho para se encontrar a solução para o pedido de João
Paulo II. Voltar às origens significa aproximar-se mais do Evangelho e
encontrar caminhos para simplificar profundamente a máquina burocrática
vaticana que emperra tudo e impede a Igreja de cumprir fielmente a sua missão
no mundo de hoje.
Vale também para os senhores cardeais,
neste momento significativo da história da Igreja, a exortação de Jesus: “Sede
astutos como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16). Precisamos
devolver à Igreja a sua vocação de comunidade chamada à comunhão e participação
(koinonía), descentralizando o poder
e concedendo mais espaço às cristãs e aos cristãos batizados, às Igrejas
locais, aos seus bispos e presbíteros, ao Povo de Deus, verdadeiro e único
sujeito da evangelização. Afinal de contas formamos uma comunidade, na qual
todos somos irmãos, onde ninguém é pai, doutor e mestre de ninguém, onde somente
Deus é o Pai, Jesus o único Mestre e o Cristo o único doutor (Mt 23,8-10).
José Lisboa Moreira
de Oliveira
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