Você
também é discípulo/a deste homem?
(Is 52,13-53,12; Sl 30/31; Hb 4,14-15;
5,7-9; Jo 18,1-19,42)
O comércio não sabe o que fazer com esta sexta-feira,
e um clima estranho envolve a todos/as. Até as pessoas mais indiferentes intuem
que algo profundamente significativo aconteceu e acontece nesse dia. Tudo é
diferente, inclusive a liturgia. Em nenhuma parte do mundo se celebra missa, e
começamos o encontro ajoelhados ou prostrados, sem canto, sem sinal da cruz.
Uma multidão, talvez maior do que na festa da páscoa, se reúne nos templos. Em
geral, são pessoas experimentadas na dor. Todos intuem que nesta sexta-feira se revela o que há de mais profundo no ser humano e
de mais belo no coração de Deus. O
mistério do mal atinge sua força mais terrível. A humanização de Deus atinge
seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu
grau máximo. O amor a Deus brilha na entrega despojada e solidária a serviço do
ser humano despojado de poder e de honra.
“Vejam o
meu servo!”
Na vida de Jesus de Nazaré, o Messias e Filho de Deus,
se revela de forma pessoal uma experiência universal. Isaías expressou com uma
profundidade inigualável a opção e o destino daqueles/as que mantém a
fidelidade em situações de risco e de controvérsia; daqueles/as que procuram
manter sua identidade de Servidores/as de Deus e de relativização, venha o que
vier; daqueles/as que não aceitam acender uma vela a Deus e outra aos
diabólicos interesses pessoais ou de grupo.
Assim como todos os Servos e apesar das pinturas e
imagens que querem desmenti-lo, Jesus não tinha aparência e beleza que pudessem
atrair os olhares. Era como uma raíz em terra seca, como um indivíduo do qual
escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana.” Como
diz o salmista, provocava nojo aos vizinhos e terror aos amigos. Foi esquecido
como um morto ou como um objeto perdido. Não
parecia humano e muito menos divino. Fez orações e súplicas em alta voz e
com lágrimas e foi cortado da terra dos vivos.
Mas sua vida se
tornou semente. Nós é que estávamos enganados
e perdidos. O Servo fiel não perde sua vida, pois a doa livremente, e por isso
prolonga sua existência. Ele carrega nas costas os pecados e sofrimentos de
muitos, e por isso a luz brilha em seu rosto. Ele confia seu destino nas mãos
daquele que é o segredo da vida, e assim vive naqueles/as que servem. Eis o rosto de Deus: é um rosto de Servo.
Eis o ser humano realizado em seu máximo grau: chegou à maturidade e à estatura
de irmão e irmã. Eis o caminho para chegar a Deus e à humanização.
“Eles
mesmos não entraram no palácio para não se contaminarem.”
Conhecemos as tramas, traições e intrigas que levaram
à prisão, condenação, tortura e morte de Jesus. São opções e atitudes que
revelam o mistério do mal e sua força nas pessoas e nas estruturas. Um mal nada
abstrato, que se expressa nos costumes, nas leis, nos sistemas econômicos, nos
medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo,
como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus, não entram no
palácio do governador para não se tornrarem impuras. As ditaduras de todos os
quadrantes criam leis iníquas que as justificam e purificam.
Aqueles/as que, consentindo ou não, fazem dos seus
interesses e ambições um ídolo intocável, cedo ou tarde acabam identificando
como diabólicos e ameaçadores todas as pessoas, grupos ou movimentos que pensam
diferente e propõem uma ordem alternativa. E criam estratégias para eliminá-los
sem sujar as mãos, dentro dos quadros da lei, sem se tornarem impuros. Quantas
leis – escritas nos códigos ou na alma dos povos – não passam de artifícios
para disfarçar o domínio e a violência dos mais fortes sobre os mais fracos, na
tentativa de empedir que vivam plenamente?
É este mistério
inexplicável da iniquidade que faz com que a noite venha às três horas da tarde. Uma iniquidade que começa não se sabe bem onde e se
expressa na afirmação de si mesmo/a à custa dos outros, na busca sem fim de
vantagens, no desprezo de quem é diferente,
no fechamento a toda e qualquer mudança, no uso do poder cultural e religioso
para abusar de menores, enfim: na defesa da ordem desordenada que protege os vencedores
e poderosos. Descrevendo este dinamismo maldito nos fere, o salmista diz: “Eis
que na culpa fui gerado, no pecado minha mãe me concebeu.”
“Eis o homem!”
Diante das autoridades, Jesus não parece disposto a
debater nem se defender. Ele tem cosciência de que nasceu e veio ao mundo para
dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel
de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo,
transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo: “Eis o homem!”
Esta é mais que a apresentação de um homem procurado
pelas forças da ordem. Fixemos o olhar nesse personagem que realizou em grau pleno a vocação de todo ser
humano. Não, o ser humano não é chamado apenas a sofrer e padecer, nem essencialmente
a gozar e mandar. Em Jesus descobrimos que a
pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida,
quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em
sua dignidade. “Eis o homem!”
O ser humano maduro não é o amigo de César, que age
sem autonomia e sem autoridade e que ordena por medo, mas a pessoa que
transcende os interesses individuais e institucionais e se abre ao horizonte da
vontade de Deus e do seu reino. Por isso, do alto da cruz, Jesus diz que no seu
corpo doado inteiramente a criação chega ao seu ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera
no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e
semente fecunda nas mãos de Deus e na terra dos Homens.
“A quem
procurais?”
Esta pergunta dirigida por Jesus aos soldados que o procuravam
retoma a pergunta feita aos primeiros discípulos: “O que é que vocês estão
procurando?” (Jo 1,38). E aqui ela se dirige a todos/as nós, reunidos/as para
celebrar a paixão de Jesus Cristo e acolher sua cruz. O que nós esperamos de
Jesus e o que buscamos nesta celebração? Consolação nos sofrimentos
inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Inteligência para
conciliar a submissão à lógica do ‘cada um pra si’?
Numa igreja que nasce e se edifica sobre a fé em Jesus
crucificado, só é licito buscar forças para caminhar na fé e perseverar no
seguimento de Jesus, amigo e servidor da humanidade. Do alto da cruz ele se
dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu filho!” E, dirigindo-se
ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Aos
pés da cruz nasce uma nova família,
não mais presa aos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas aberta e
servidora de todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por isso que nesta sexta-feira santa nossa oração se
abre numa universalidade que não deveria estar ausente de nenhuma celebração:
rezamos pela Igreja, pelo papa e todos os ministros, mas também pela união das
diferentes Igrejas cristãs, pelos judeus e pelos não cristãos, pelos que não
acreditam em nada, pelas autoridades e pela humanidade sofredora. Diante do
crucificado, filho da humanidade e filho de Deus, aprendemos que os muros e
fronteiras religiosas, políticas, econômicas e culturais não fazem o menor
sentido.
“Lá havia
um jardim, no qual ele entrou com os seus discípulos.”
Num jardim Jesus foi preso e num jardim foi sepultado.
Estes dois jardins nos levam a um outro, aquele do Édem. Esse Jesus que nos ama
até o fim é o novo Adão, o ser humano
que não caiu em tentação porque aceitou
carregar o peso dos irmãos, servindo assim unicamente a Deus. A cruz, sendo
expressão da fidelidade de Deus e da doação maior do ser humano, é a nova árvore da vida, alimento perene e
incomparável do qual todos/as nos podemos servir abundantemente. Maria é a nova
Eva, a mãe dos viventes e sobreviventes.
Na caminhada para o Calvário, Pedro havia sido
interrogado por uma empregada do Sumo Sacerdote: “Não pertences tu também aos
discípulos deste homem?” Sem disposição e coragem para assumir riscos, Pedro
negou. Mas, aos pés da cruz, há uma pequena comunidade corajosa e perseverante.
O discípulo amado nos representa na nova
família que nasce do Espírito derramado, à qual foi entregue a missão de
renovar a criação. Diante da prova da
proximidade e do amor de Deus, respondamos com palavras e com a vida: “Sim, eu
sou discípulo/a deste homem!” E aproximemo-nos e adoremos este que nos ama sem
medida com um beijo que não é de traição, mas de agradecido reconhecimento.
Pe. Itacir Brassiani msf
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