Quero celebrar o Dia
Internacional da Mulher e homenagear esta graciosa metade da humanidade
com uma espécie de panteão no qual recordo, dia após dia, o nome, a história e
a grandeza humana de algumas mulheres pouco reconhecidas pela história e pelas
colunas sociais. São simples e breves flashes
de vidas muito mais belas e complexas, uma espécie de retalhos da vida, tomados
emprestados da inspirada pena do escritor uruguaio Eduardo Galeano. E começo
pedindo emprestado os versos de Ivone Boechat:
“Um aroma suave
/ exalou das mãos do Criador, / quando seus olhos / contemplaram / a solidão do
homem no Jardim! / Foi assim: / o Senhor desenhou / o ser gracioso, meigo e
forte, / que Sua imaginação perfeita produziu. / Um novo milagre: / fez-se
carne, / fez-se bela, / fez-se amor, / fez-se na verdade como Ele quer! / O
homem colheu a flor, / beijou-a, com ternura, / chamando-a, simplesmente, / Mulher!”
No fim da festa
de São João de 1967, antes do amanhecer, um furacão de balas arrasa o povoado
boliviano de Llallagua. Parece fulgor de ossos a luz do novo dia. Depois o sol
se esconde atrás das nuvens, enquanto os párias da terra contam seus mortos e
os levam em carretas. Os mineiros marcham por uma ruela de barro de Llallagua.
A procissão atravessa o rio, o leito de suja saliva entre pedras de cinza, e
pelo vasto pampa chega ao campo-santo de Catavi.
Não tem sol o
céu, imenso teto de estanho, nem tem a terra fogueiras que a qeueçam. Jamais
esteve esta estepe tão gelada e tão solitária. Há que cavar muitos poços.
Corpos de todos os tamanhos jazem em fila, estendidos, esperando. Do alto do
muro do cemitério, uma mulher grita.
Domitila (07.05.1937-13.03.2012)
grita do alto do muro contra os assassinos dos mineiros bolivianos. Ela mora em
dois cômodos sem latrina nem água, com seu marido mineiro e sete filhos. O oitavo
filho anda querendo sair da barriga. Cada dia Domitila cozinha, lava, varre,
tece, costura, ensina o que sabe e cura o que pode, e além disso prepara cem
empanadas e percorre as ruas buscando quem compre.
Por insultar o
exército boliviano, levam-na presa. Um militar cospe em sua cara. “Cuspiu na minha cara. Depois me deu um
chute. Eu não aguentei e dei um sopapo nele. Ele tornou a me dar um murro.
Arranhei a cara dele. E ele me batendo, me batendo... Botou o joelho aqui em
cima do meu ventre. Apertou o meu pescoço e estava por me enforcar. Parecia que
queria arrebentar meu ventre... Então, com minhas duas mãos, com toda minha
força baixei minhas mãos nele. E não me lembro como, mas tinha agarrado seu
punho e tinha mordido, mordido... Tive um asco terrível ao sentir na minha boca
o seu sangue. Então, com toda a minha raiva, cuspi seu sangue...
Ele chamou os soldados e fez com que uns quatro
me agarrassem... Quando despertei como de um sonho, estava engolindo um pedaço
do meu dente. Senti ele aqui na garganta. Então notei que o fulano tinha me
quebrado uns seis dentes. O sangue estava jorrando e nem os olhos nem o nariz
eu podia abrir...
E como se a fatalidade do destino fizesse,
começou o trabalho de parto. Comecei a sentir dores, dores e dores, e logo já
me vencia a criatura por nascer. Já não pude aguentar. E fui me agachar numa
esquina. Me apoiei e cobri minha cara, porque não podia fazer nem um pouquinho
de força. A minha cara doía como se fosse arrebentar. E num desses momentos, me
venceu. Notei que a cabeça do bebê já estava saindo. E desmaiei.
Não sei depois de quanto tempo, me perguntava: “Onde
estou? Onde estou?” Estava toda molhada. Tanto o sangue quanto o líquido que a
gente põe para fora durante o parto tinham me molhado toda. Então fiz um
esforço e acontece que encontrei o cordão do meu bebê. E através do cordão,
esticando o cordão, encontrei meu bebezinho, totalmente frio, gelado, ali em
cima do chão...” (Eduardo Galeano, O século do vento. Memória
do fogo, vol. 3, L&PM Pocket vol. 909, 2010, p. 264-266)
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