Uma
lição inesquecível de um jovem pregador
(Is 43,16-21; Sl 125/126; Fil 3,8-14; Jo
8,1-11)
Estamos entrando na última semana da caminhada
quaresmal. E o convite insistente é para que não deixemos a liturgia e a
doutrina nos levar ao passado ou às alturas abstratas. Deus está fazendo hoje coisas novas! A fé vivida e testemunhada
pelas gerações que nos antecederam serve para acender nossas utopias e iluminar
a estrada que devemos percorrer. Paulo deixa bem claro que quem encontra e
acolhe Jesus Cristo não tem medo de jogar no lixo costumes, sistemas e
doutrinas que hierarquizam, desprezam e escravizam. Iluminados pelo encontro de
Jesus com a mulher acusada na praça, assumimos hoje o compromisso de afirmar o
protagonismo e a força de renovação da juventude. Nosso mestre não é um jovem
oriundo da desprezada Galiléia?
“Não
é preciso ter saudades das coisas do passado.”
Um dos grandes riscos que corremos hoje é o de viver
com a cabeça e o coração voltados ao passado, como se os tempos áureos
estivessem a ele acorrentados. É frequente ouvirmos pessoas dizer suspirando:
“No meu tempo não era assim...” E
muitos pregadores usam o púlpito e o microfone para repetir que “nos últimos
anos...” tudo entou em decadência: a família, os hábitos dos jovens, a
política... Como se nos tempos anteriores – imperiais, coloniais, patriarcais,
violentos – tudo fosse perfeito! Perder a conexão com o presente é perder a
sintonia com o que Deus está fazendo.
Através do profeta Isaías, Deus nos convida a mudar de
perspectiva. Isaías nos convida a não ter saudades do passado. “Eis que estou eu fazendo coisas novas... No
deserto eu abro um caminho, rasgo
rios na terra seca.” Não é uma promessa: é
uma ação em curso, no tempo presente. E Paulo completa, provocando-nos com
seu itinerário pessoal: “Esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente.” Nossas celebrações devem pôr em
relevo a vida presente, à luz do mistério de Jesus Cristo, e não podem ser
reduzidas a uma memória morta de fatos de um passado remoto.
“Moisés,
na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres.”
Assim, não podemos ceder à tentação de ler o episódio
relatado por João como coisa do passado. Chama a atenção que os escribas e
fariseus não dão tréguas ao seu zelo pela lei e ‘trabalham’ noite e madrugada
adentro: prendem uma mulher adúltera e a trazem para o centro do círculo que se
formara em torno de Jesus no templo. O
centro, que era era o lugar da Lei, fora invadido por Jesus e agora é ocupado
pela mulher acusada. Parece que os pobres e oprimidos só ocupam o centro
como réus nos tribunais ou nas páginas policiais...
O cinismo
dos líderes religiosos é impressionante: acusam
uma pobre mulher com o objetivo de atingir o próprio Jesus. “Esta mulher
foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais
mulheres. E tu, o que dizes?” Parece que Jesus procura evitar a armadilha. Mas
podemos crer que não lhe passa despercebida a leitura tendenciosa que os
escribas e fariseus fazem da Lei de Moisés, pois no Levítico está escrito: “Se um homem cometer um adultério com a
mulher do próximo, o adúltero e a
adúltera serão punidos com a morte” (Lv 20,10). Onde fora parar o adúltero,
o primeiro citado pela Lei?
No fundo, estes senhores que se apresentam como
zelosos defensores dos direitos de Deus não passam de ferozes agressores dos direitos humanos mais elementares. E assim como
era no passado é também no presente! Em nome do maldito e absoluto direito à
propriedade privada, aquela que nos priva de viver e de amar, criminaliza-se os
sem-terra, os índios e aqueles/as que os apóiam. E em nome de uma suposta
experiência, imensos setores da juventude são excluidos do trabalho e
frequentemente pouco considerados até na própria organização da nossa Igreja.
“Quem
dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra.”
Diante da insistência destes sujeitos dispostos a
executar a sentença capital contra a mulher e a denunciá-lo como subversivo
diante da Lei, Jesus pronuncia sua sentença: “Quem dentre vós não tiver pecado,
atire a primeira pedra.” É como se Jesus transformasse aquela pobre e frágil
mulher numa espécie de espelho no qual todos pudessem ver suas próprias
debilidades, frustrações e transgressões. É como se dissesse que não faz
sentido transformar uma pessoa ou um grupo em bode expiatório. Infelizmente
continuam sendo muitas as vítimas acusadas sumariamente por detratores que
carregam pedras mortais nas mãos e pronunciam palavras ofensivas nos meios de
comunicação.
Mas não ofendamos a inteligência que ainda resta nem
falsifiquemos as sagradas palavras de Jesus estimulando uma irresponsável
compaixão pelos senhores, chamem-se Pantoja, Calheiros ou Berlusconi. As
vítimas jogadas na fria calçada das praças, telas, templos e tribunais são
outras: negros e quilombolas questionados no seu direito a quotas universitárias
e terras; índios acusados de primitivos e improdutivos, e roubados na herança
dos seus antepassados; mulheres violentadas no corpo e na alma, em casa e nas
praças, discriminadas até nas Igrejas; jovens impedidos de sonhar e indigandos
forçados a desocupar as praças para que o mercado continue dominando as
consciências...
“Eu
também não te condeno.”
Evitemos transformar Jesus de Nazaré num guru
inofensivo, incapaz de levantar a voz contra quem quer que seja. Não usemos seu
nome e sua Palavra para sustentar o medo da profecia e a aliança com os
poderosos. Não busquemos nele a justificativa para calar diante dos corruptos,
dos violentos e dos acusadores. Jesus nos provoca a decidir de que lado
estamos: do lado daqueles que acusam para esconder sua própria cupidez e
preservar os privilégios de machos, brancos e ricos; ou do lado daqueles que são
diária e continuamente acusados por todos os males do mundo.
Jesus não deixa as coisas simplesmente como estão. Com
sua resposta, cala a boca dos acusadores e interrompe uma ação violenta prestes
a eliminar uma pessoa concreta. Diante da provocação de Jesus, os homens que
haviam se apresentado tão seguros de sua justiça vão saindo um a um, começando
pelos mais velhos. Chegam à praça como juízes e saem como réus. Entendem que
cada pessoa humana é portadora de uma dignidade que nunca pode ser violada por
ninguém e por nada. E que a lei e os costumes nem sempre asseguram a justiça, e
precisa ser reformada.
Mas não se trata de suspender nosso papel de juízes apenas
enquanto fazemos as contas com os nossos próprios erros. Jesus – Aquele que não
cedeu à tentação de colocar-se no lugar de Deus e de erigir o culto aos seus
interesses individuais como lei absoluta – não
condena a mulher que está sendo acusada. Aquele que não cometeu pecado
também não condena aqueles/as que andam encurvados/as sob o peso da vida. Ele
se fez pecado para estar com todos/as os/as dominados/as e proscritos/as e
participar das lutas e do destino deles/as.
“Traze
de volta, Senhor, nossos exilados.”
A liberdade lúcida e solidária de Jesus é uma memória
e um sonho que, como a recordação do êxodo para os hebreus, enche nossa boca de
sorrisos, faz nossa língua cantar de alegria e nos desafia a mudar conceitos e
práticas tradicionais. Paulo não brinca quando diz que, por causa de Jesus
Cristo, perdeu tudo e jogou no lixo aquilo que sempre lhe parecera precioso e
certo. Para ele, diante da pessoa e do projeto de vida de Jesus Cristo, todas
os sistemas e ideologias, inclusive religiosas, perderam o sentido.
Esta é a conversão
radical à qual nós e nossas igrejas e instituições estamos chamados/as.
Acolhendo as pessoas que, como esta mulher cujas razões ninguém queria ouvir,
Jesus Cristo assina uma claríssima e insuperável declaração dos direitos humanos. E não fica na simples declaração
formal, pois, em suas práticas, afirma e realiza tais direitos. Ele traz de
volta os exilados e abre espaço para os excluídos. E as Igrejas que se reúnem e
falam em seu nome não podem fazer outra coisa.
“Quem
semeia entre lágrimas colherá com alegria.”
Te agradecemos
Jesus de Nazaré, jovem e suspeito pregador, pela madura e sólida lição que nos
ensinas hoje. O que são nossos privilégios, costumes e doutrinas diante da
humana solidariedade e da incrível liberdade que nos ofereces? Envia teu
Espírito sobre nós e sobre a tua Igreja: que ele nos dê a coragem de pôr no
centro dos nossos projetos e decisões a defesa e a promoção da dignidade da
pessoa humana. Ajuda-nos a desmascarar a hipocrisia e a violência, mesmo quando
aparecem maquiadas de tradição justiça. Abre nossas mãos para que, acolhendo e
cooperando com a juventude, não cansemos de semear o teu Reino de liberdade,
jovialidade e solidariedade, esperando alegres colheitas. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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