Celebramos uma semana de
preparação do Dia Internacional da Mulher e homenageamos esta graciosa metade
da humanidade com uma espécie de panteão no qual recordamos, dia após dia, o
nome, a história e a grandeza humana de algumas mulheres pouco reconhecidas
pela história e pelas colunas sociais. Foram simples e breves flashes de vidas muito mais belas e
complexas, uma espécie de retalhos da vida, tomados emprestados da inspirada
pena do escritor uruguaio Eduardo Galeano. E nos acompanharam os versos de
Ivone Boechat:
“Um aroma suave
/ exalou das mãos do Criador, / quando seus olhos / contemplaram / a solidão do
homem no Jardim! / Foi assim: / o Senhor desenhou / o ser gracioso, meigo e
forte, / que Sua imaginação perfeita produziu. / Um novo milagre: / fez-se
carne, / fez-se bela, / fez-se amor, / fez-se na verdade como Ele quer! / O
homem colheu a flor, / beijou-a, com ternura, / chamando-a, simplesmente, / Mulher!” Hoje, neste
memorável dia, recordemos as ‘mulheres detetives’ conhecidas como ‘Mães de Praça de Maio’ e a história de Rosa e sua filha Tamara.
Em 1983,
enquanto se desintegra a ditadura militar na Argentina, as Avós da Praça de Maio andam em busca dos netos perdidos. Esses
bebês, aprisionados com seus pais ou nascidos em campos de concentração, foram
repartidos como butim de guerra. E vários têm como pais os assassinos de seus
pais.
As avós
investigam a partir do que houver: fotos, dados soltos, uma marca de
nascimento, alguém que viu alguma coisa. E assim, abrindo passo a golpes de
sagacidade e de guarda-chuva, já recuperaram alguns.
Tamara Arze, que desapareceu com um ano e meio de idade, não foi parar em mãos
militares. Está numa aldeia suburbana, na casa da boa gente que a acolheu
quando foi jogada por aí. A pedido da mãe, as avós empreendem a busca. Contavam
com poucas pistas. Após um longo e complicado rastrear, a encontraram.
Cada manhã,
Tamara vende querosene num carro puxado por um cavalo, mas não se queixa da
sorte. E a princípio não quer nem ouvir falar de sua mãe verdadeira. Muito aos
poquinhos as avós vão lhe explicando que ela é filha de Rosa, uma operária boliviana
que jamais a abandonou; que numa noite sua mãe foi capturada na saída da
fábrica, em Buenos Aires...
Rosa foi
torturada, sob controle de um médico que mandava parar, e violentada, e
fuzilada com balas de festim. Passou oito anos presa, sem processo nem
explicações, até que, em 1982, a expulsaram da Argentina. Agora (em 1983), no
aeroporto de Lima, espera. Por cima dos
Andes, sua filha Tamara vem voando rumo a ela.
Tamara viaja
acompanhada por duas das avós que a encontraram. Devora tudo o que servem no
avião, sem deixar nem uma migalha de pão ou um grão de açúcar. Em Lima, Rosa e
Tamara se descobrem. Olham-se no espelho, juntas, e são idênticas: os mesmos
olhos, a mesma boca, as mesmas pintas nos mesmos lugares.
Quando chega a
noite, Rosa banha sua filha. Ao deitá-la, sente um cheiro leitoso, adocicado. E
torna a banhá-la. E outra vez. E por mais que esfregue o sabonete, não há
maneira de tirar-lhe esse cheiro. É um cheiro raro... E de repente, Rosa se
recorda: este é o cheiro dos bebês quando acabam de mamar! Tamara tem dez anos
e nesta noite tem cheiro de recém-nascida. (Eduardo Galeano, O século do vento. Memória
do fogo, vol. 3, L&PM Pocket vol. 909, 2010, p. 355-356)
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