O cânon 332 #2 já prevê essa eventualidade: si continget ut Romanus
Pontifex munere suo renuntiet, ad validitatem requiritur ut renuntiatio libere
fiat et rite manifestetur, no vero ut a quapiam acceptetur. No nosso bom
português: se acontecer que o papa renuncie à sua função, para a validade se
requer que essa renúncia seja livre e claramente manifestada, não que seja
aceita por alguém. De fato, não há ninguém acima dele para essa aceitação. O
fato é que já aconteceu coisa parecida na história. É o caso do monge Celestino
V que, depois de uns 5 meses, resolveu voltar para o mosteiro. Achou que não
era esse o seu caminho. Já andava meio velho, uns 85 anos. Na Idade Média se
discutia muito uma questão que nós hoje quase não discutimos. Quando cessa o
poder do papa? A resposta vinha já pronta: por morte certa; por demência
comprovada e irreversível, por heresia (sim! Por heresia! Aí se discutia como
um papa poderia ser herege e outras coisas mais) e, por fim, por renúncia.
Assim fica claro que essa hipótese é já prevista – a da renúncia – e de fato já
se verificou na história. Agora Bento XVI coloca o seu ato renunciatório em
outro enquadramento histórico dentro da alta cúpula do Vaticano.
Alguns acham que ele devia ficar até a morte (não descer da cruz, como
fez João Paulo II). Mas essa hipótese não se verificou e não decorre da
doutrina histórica sobre a autoridade do papa, tal como o Concílio Vaticano I
(1870) definiu. Aliás, aqui é bom prestarmos atenção nesse ponto. Como ler
atualmente essa doutrina tão impregnada nos católicos desde o século XIX? Para
ler corretamente o serviço de Pedro hoje devemos iluminar o Vaticano I com os
ensinamentos do Vaticano II. Para fugir de qualquer equívoco, é preciso
distinguir no papa a figura do sucessor de Constantino e a do sucessor de Pedro.
São Bernardo escrevendo a seu amigo Eugênio III, em 1148, o aconselhava-o a
fazer essa distinção: “Não me consta que Pedro tenha sido visto andando em
procissão, vestido com pedras preciosas e de seda, ou protegido por um
baldaquino, ou montando um cavalo branco, ou escoltado por soldados ou rodeado
por numeroso cortejo de assistentes. Tolera, portanto, esse fausto, que faz de
você sucessor de Constantino, como uma concessão ao nosso tempo, mas atento a
que não considere isso como obrigação”.
Feita essa distinção, certamente importante, deve-se superar a “inflação
ultramontana” que se seguiu ao Concílio Vaticano I, uma visão
“infalibilista”, que via em qualquer manifestação do papa já algo infalível. Infalível
mesmo é Deus. O papa, como pessoa humana, é falível como qualquer um de
nós. O próprio texto da proclamação dogmática de 1870 nos diz que a infalibilidade é um dom, um carisma dado à
Igreja para que ela persevere na verdade, pela assistência do Espírito
Santo, prometido por Jesus até o fim dos tempos. Portanto, a infalibilidade é uma graça, um carisma que o conjunto dos fiéis
acolhe para perseverar na fé (cf. LG 12a). O ministério apostólico do papa
é infalível quando ele expressa fielmente essa fé da comunidade dos fiéis, de
tal forma que ela seja assim confirmada no seu caminho em direção à verdade,
que é Deus mesmo. O mesmo se diga ao conjunto dos bispos, quando dispersos ou
reunidos, expressam a fé recebida dos apóstolos, confirmando os seguidores de
Jesus Cristo em sua fé.
Um outro ponto que apareceu nas discussões em torno da renúncia do papa
e da eleição de outro, é como entra nisso tudo o Espírito Santo. Analisando
esse aspecto, gostei da abordagem de I. Gebara, colocando-se contra uma
abordagem ingênua e mágica da ação do Espírito Santo na escolha do papa (e em
outras circunstâncias). A ação do Espírito Santo não dispensa uma
leitura histórico-ideológica dos caminhos das decisões eclesiásticas. Não se pode passar ao largo das
divergências e conflitos históricos, sempre presentes onde há seres humanos que
colocam fatos históricos. É bem conhecido o episódio relatado nos Atos dos
Apóstolos: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” (15, 28). Diante do
conflito entre os seguidores de Jesus Cristo provindos do mundo helênico e os
de origem judaica, os apóstolos tomaram, eles mesmos, uma decisão fundamental
que não os eximiu de responsabilidade histórica. Não dizem que pareceu bem
apenas ao Espírito Santo, mas também “a nós”. Esse nós envolve desejos,
embates, demandas, interesses e tudo o mais que o ser humano imperfeito,
incompleto, expressa no exercício histórico de sua liberdade. Poderíamos dizer,
plageando Tomás de Aquino: o Espírito Santo não anula a nossa história, mas a
pressupõe (gratia supponit naturam, non destruit eam).
Olhando para o futuro, o que poderíamos esperar de um novo papa?
Primeiro, que ele deixe para traz a
herança imperial da cristandade e, assim, purifique o serviço petrino de
confirmar os irmãos na fé, conduzindo-os à unidade em Cristo, respeitando a
diversidade, buscando a unidade no essencial da fé.
Que ele respeite o serviço
apostólico dos demais bispos, valorizando a colegialidade episcopal. Que
não se comporte como um superbispo, mas como o irmão maior que vem ao encontro
às necessidades da Igreja dentro do mundo de hoje.
Que promova não condenações, mas
diálogo e misericórdia, tomando a sério o pluralismo de hoje não só fora da
Igreja, mas também dentro dela. Nessa perspectiva, todos nós esperamos que
promova o diálogo querido pelo Concílio Vaticano II com o mundo contemporâneo,
com os nossos irmãos em Cristo – o ecumenismo – e o diálogo inter-religioso. Enfim,
que leve a sério o Concílio Vaticano II, sem ceder de cá e de lá, sobretudo aos
seus detratores!
Cleto Caliman
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