A Igreja: mistério de fé
Os últimos dias
fizeram com que os olhos do mundo se voltassem com curiosidade e interesse para
a Igreja Católica. O agente detonador de todo este movimento foi, sem dúvida, a
inesperada renúncia do papa Bento XVI. Mas parece-me que ao fundo está
outro fator que convém trazer à baila, examinar e refletir: o lugar dessa
instituição de 2 mil anos em uma sociedade secularizada, plural e libertária
como é hoje a parte ocidental do mundo.Não é a primeira vez que a Igreja – e
muito concretamente a Igreja Católica – passa por uma grave crise.
Diria até que
aquela que agora atravessamos não é das piores. Senão, lembremo-nos da primeira
contenda entre Pedro e Paulo, da qual o Novo Testamento dá notícia, e que
poderia ter dividido a Igreja para sempre. E além dela, a crise ariana em
torno da divindade de Jesus.
E, mais perto de
nós, a que resultou na Reforma Protestante com simonia e outros desmandos.
Crises, portanto, não são novidade para essa Igreja, que a todas
sobreviveu. Desde uma perspectiva de fé, a análise que se possa
fazer do atual momento que vive a Igreja é necessariamente diferente de outras
análises, mais sociológicas, políticas etc. O olhar da fé não quer
ignorar ou excluir esses outros olhares.
No
entanto, sob pena de desvirtuar-se totalmente e não fazer ressoar de forma
adequada a palavra diferenciada que deseja pronunciar, não pode deixar de lado
o que lhe é próprio e específico. Em uma perspectiva de fé, a Igreja é
antes de tudo um mistério. A ecclesia neotestamentária
não consiste apenas em um grupo que se reúne com regras próprias e interesses
comuns. É muito mais que isto. Ou talvez radicalmente diferente
disto. Trata-se da assembleia dos que creem em Jesus Cristo e no Deus por
ele revelado. A fé neste evento histórico-teologal mudou suas vidas, e
eles e elas desejam agora entrar em um novo modo de vida: o modo de vida
crístico, que é essencialmente comunitário. A comunidade dos que assim querem
viver é então a Igreja. Santa e pecadora é essa Igreja, que desde o
primeiro momento se autocompreendeu, em palavras do apóstolo Paulo, como esposa
de Cristo.
Nela, o que é
humano, contingente, pecador, sempre existiu e é iniludível. Composta de
seres humanos e frágeis, muitas vezes se viu a comunidade sacudida e erodida
pelo mal que se expressou em lutas de poder, invejas, alianças espúrias etc.
Porém, sempre dessas crises se levantou e cresceu, porque seu fundo mais
profundo é a santidade de Cristo, que é sua cabeça; é o Vento Santo do
Espírito, que a preside e conduz, e não permite que nada prevaleça contra
ela. O mesmo Paulo que usava expressões tão elevadas para se referir à
Igreja que amava tinha consciência do pecado presente em seu seio.
E vemos repetidas
vezes o apóstolo usar expressões duras para repreender os fiéis que considerava
filhos – “filhinhos” ternamente amados – e que não hesitava em chamar de
“santos” quando os percebia vítimas dos enganos e das falácias do pecado que os
dividia e conspurcava. Os escândalos que hoje presenciamos ferindo a face
da Igreja, e que explodiram e ganharam visibilidade no pontificado que
ora termina com Bento XVI, não são novos, portanto. Porque as paixões e
os vícios desde sempre convivem neste abismo de transcendência e finitude que é
o ser humano.
O desalento e
sofrimento de Bento XVI diante de certas situações eclesiais hodiernas, conclamando
a Igreja à conversão no início da Quaresma, foram também os de muitos líderes
eclesiais em todos os níveis e segmentos eclesiais, ao longo desta história de
mais de dois milênios.
A verdade tem que
ser assumida e olhada de frente, por mais dolorosa e vergonhosa que seja.
Pois, sem reconhecê-la e assumi-la, a conversão não se dará. No
entanto, reconhecer os pecados da Igreja implica assumi-los como nossos.
E assumi-los na fé. Fé que nos diz que não se trata apenas de uma instituição
civil ou de uma grandeza sociológica essa que está no epicentro de tantos
conflitos. Mas trata-se de uma comunidade de fé. E assim sendo,
apesar de ter e dever reconhecer todas as fragilidades próprias à humana
condição de seus membros, é mistério que faz encontrar o brilho da santidade e
do amor, mesmo em meio às mais escuras e densas noites. Só com esta
atitude a Igreja poderá realizar as mudanças que deseja e que são urgentes e
necessárias.
Santa e pecadora,
humana e divina, mistério de fé, ela procurará então, uma vez mais, voltar-se
para o Norte que a orienta e segui-lo com fidelidade e esperança. A comoção que
provocou a renúncia do papa é sinal de que mesmo com um papel diferente, mesmo
em um mundo secularizado, a comunidade dos que guardam o testemunho de Jesus e
creem no Deus que Ele chama de Pai ainda tem algo a dizer nestes tempos tão
conturbados, que são os nossos.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer
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