A disputa pelo poder na cúpula da
Igreja
As recentes notícias de disputas pelo poder na cúpula da Igreja Católica
Romana têm deixado muita gente perplexa. O próprio papa Bento XVI chegou a
fazer referências ao assunto, considerando-o nocivo para o anúncio do
Evangelho. As pessoas mais simples, portadoras de uma visão angelical do
ministro ordenado, sentem-se como que maltratadas em sua fé, quando ouvem tais
notícias. Não acreditam no que é dito. As pessoas mais críticas, pensantes,
sabem que se trata de algo muito sério que não há como esconder. Muitos membros
da hierarquia, imitando a avestruz, tentam fugir do problema. Normalmente saem
pela tangente, procurando desviar-se do tema. Foi o caso, por exemplo, de um
ilustre canonista, solenemente vestido em seu clergyman, que entrevistado ao
vivo por uma jornalista de uma rede de televisão, saiu com uma desculpa
esfarrapada. Perguntado pela jornalista o que o papa Bento XVI quis dizer
quando aludiu a divisões dentro da Igreja, o ilustre mestre em Direito Canônico
deu uma resposta evasiva que soou mais ou menos assim: “Em seus discursos o
papa tem sempre presente o tempo litúrgico. Como estamos na Quaresma, ele quis
fazer-nos um convite à conversão. Ele naturalmente estava se referindo à
obrigação que temos de nos converter e de nos purificar de todas as
fragilidades”.
A disputa pelo poder dentro da Igreja é tão antiga quanto a própria
comunidade cristã. Os Evangelhos sinóticos registram o episódio dos irmãos
Zebedeu, que instigados por uma mãe preocupada com o futuro de seus filhos,
pretendem ocupar o lugar de primeiros ministros no Reino de Jesus (Mt
20,20-28). A pretensão dos dois irmãos causou ciúmes e indignação nos outros
dez discípulos. Muitos estudiosos da Bíblia afirmam que por trás desta
narrativa estaria a briga pelo poder nas primeiras comunidades cristãs. Os
evangelistas teriam registrado o episódio para chamar a atenção dessas
comunidades e orientá-las quanto à forma como deveriam lidar com a questão do
poder. O evangelista João, embora não narre este episódio, deixou registrada a
parábola do Bom Pastor (Jo 10,11-21). Ele reflete sobre o poder na comunidade
cristã, criticando aquelas lideranças que se comportam como ladrões e
assaltantes, não entrando “pela porta do curral” (Jo 10,1). Ao que tudo indica,
trata-se de uma referência ao carreirismo e ao oportunismo já presentes nas
comunidades cristãs do final do primeiro século da nossa era. Mais adiante, na
narrativa conhecida como “Lava-pés”, João vai novamente criticar o autoritarismo
e fazer uma catequese sobre como deveria ser o exercício do poder na comunidade
cristã (Jo 13,1-17). No versículo nove da sua Terceira Carta o ancião João
denuncia certo Diótrefes “que ambiciona dominar” e, por isso, se recusa a
aceitar as demais lideranças, difamando-as e expulsando-as da Igreja.
Paulo, em algumas de suas cartas, denuncia e critica o comportamento
ambicioso de determinadas lideranças, as quais disputam ferozmente o poder
dentro das comunidades cristãs por ele fundadas. O texto mais incisivo é aquele
da Carta aos Gálatas na qual o apóstolo denuncia pessoas que estão semeando
confusão nas comunidades e anunciando “um evangelho diferente” daquele que ele
anuncia (Gl 1,6-10). Em Corinto, depois de seu esforço evangelizador, Paulo vê
a comunidade se dividir em facções (1Cor 1,12; 3,4). Na Carta aos Filipenses
(1,12-18) o apóstolo acusa aqueles que na comunidade agem por inveja e por
espírito de competição. Tais “cães” e “falsos circuncidados” confiam “na carne”
(3,2-4) e adoram o “deus-ventre” (3,19).
A situação se agrava ainda mais quando, a partir de 380, com o decreto
de Teodósio, o cristianismo passa a ser religião de Estado e, aos poucos, as
lideranças cristãs vão assumindo o estilo autoritário e tirânico de governar
(Mc 10,42-43). Os bispos, os padres e até o próprio papa vão assimilando o
jeito de ser dos imperadores e reis. Até os títulos imperiais (excelência,
eminência, sumo pontífice, monsenhor etc.) e as insígnias (coroas, anéis,
tiaras, luvas, sapatilhas, mitras, casulas etc.) se tornam títulos e insígnias
dos pastores da Igreja. Junto com o poder vem a riqueza, o luxo e a ostentação.
E a guerra pelos primeiros lugares se torna violenta e cruel. Qualquer
historiador eclesiástico sério sabe muito bem o que isso significou. E não
podia ser diferente, pois “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” e
quando alguém se deixa levar pela “ânsia do dinheiro” termina se afastando da
fé (1Tm 6,10).
Diante do exposto resta-nos dizer que é hipocrisia tentar negar o óbvio,
ou seja, que existam disputas internas no interior da Igreja. Os autores
sagrados do Novo Testamento não esconderam isso. Pelo contrário, expuseram as
mazelas de suas comunidades. Por essa razão um teólogo ou canonista que, de
público, nega tal fato comporta-se de maneira ridícula e falsifica o próprio
Evangelho. Sabemos por experiência que tal disputa se dá ainda hoje, inclusive
nas pequenas comunidades. Com frequência vemos lideranças, coordenadores e
ministros agarrando-se ao pequeno poder que lhes é concedido pelos cargos. Até
a detenção da chave da gaveta do armário da sacristia pode se tornar fonte de
poder autoritário, dominador e opressivo.
Resta-nos uma única alternativa
para reverter tal situação. Esta alternativa tem início com a humilde confissão
e admissão da existência da disputa pelo poder no interior da Igreja. Admitida
esta realidade é indispensável repensar por completo a educação das lideranças
cristãs, desde as mais simples até os ministérios ordenados. Esta educação
implica antes de tudo a clareza acerca da total
incompatibilidade entre o modo de governar dos tiranos deste mundo e o
governo eclesial: “Entre vocês não deverá ser assim” (Mc 10,43). A partir desta
convicção a catequese vocacional de educação das lideranças deverá comportar o princípio fundamental de que o poder
na comunidade cristã é exclusivamente serviço, de modo que fique bem evidente
que quem não estiver disposto a servir não pode assumir nenhum tipo de
liderança na Igreja: “quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês” (Mc 10,43).
Este tipo evangélico de educação é um grande desafio para o momento,
pois, como vimos acima, o vício está espalhado pelas comunidades cristãs e a
visão mais comum é de que cargo ou função na Igreja é uma forma de dominar os
outros e de mostrar poder sobre os demais. Não será fácil educar à maneira de
Jesus: depor o manto do poder dominador e amarrar na própria cintura a toalha do
diákonos, do servidor, do garçom, do empregado que serve à mesa (Jo
13,4). Mas, não há outro caminho e os responsáveis pela educação das lideranças
devem deixar bem claro que não há como conciliar o poder serviço com o poder
dominação. Quem se recusa a ver a função da liderança como serviço aos outros,
se exclui automaticamente da comunidade dos discípulos e discípulas de Cristo
(Jo 13,8). Torna-se um excomungado no
sentido técnico da expressão. Infelizmente excomungamos, ou seja, expulsamos
das comunidades os que pensam diferente, mas não nos damos conta de que todo
papa e todo bispo, todo padre e todo diácono, todo ministro e toda liderança
cristã que transforma o seu cargo ou função em poder-dominação é um
excomungado. Por recusar-se a ser servidor exclui-se automaticamente do
discipulado de Jesus: “não terá parte comigo” (Jo 13,8).
Mas para chegar a tanto se faz necessário uma catequese ainda mais
profunda. Uma catequese que deixe bem claro que somos todos irmãos e irmãs,
formando uma comunidade de pessoas com igual dignidade, na qual os títulos não
contam e não devem ser utilizados para colocar alguém acima dos demais (Mt
23,8-10). Na comunidade cristã, de irmãos e de irmãs, o que conta é a
capacidade de servir. Se há grandeza em alguém, esta grandeza deve ser medida
por sua capacidade de, na humildade, servir aos outros (Mt 23,11-12). O resto é,
no dizer do apóstolo Paulo, podridão, esterco, inclusive os “nobres títulos”
com os quais algumas lideranças cristãs fazem questão de serem identificadas
(Fl 3,1-14).
José Lisboa Moreira de Oliveira
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