terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Dia Mundial da Paz (03)

Um caminho de esperança: três ações possíveis

Se deixarmos que o nosso coração seja tocado por estas necessárias mudanças, o Ano de Graça do Jubileu pode reabrir o caminho da esperança para cada um de nós. A esperança nasce da experiência da misericórdia de Deus, que é sempre ilimitada.

Deus, que não deve nada a ninguém, continua a conceder incessantemente graça e misericórdia a todos os homens. Isaque de Nínive, um Padre da Igreja Oriental do século VII, escreveu: “O teu amor é maior do que as minhas dívidas. Pouca coisa são as ondas do mar comparadas com a quantidade dos meus pecados, mas se eu pesar os meus pecados, comparados com o teu amor, eles desaparecem como se nada fossem”. Deus não calcula o mal cometido pelo homem, mas é imensamente “rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou” (Ef 2,4). Ao mesmo tempo, ouve o grito dos pobres e da terra. Bastar-nos-ia parar por um momento, no início deste ano, e pensar na graça com que Ele sempre perdoa os nossos pecados e anistia todas as nossas dívidas, para que o nosso coração se encha de esperança e de paz.

Por isso, Jesus, na oração do Pai Nosso, depois de termos pedido ao Pai a remissão das nossas ofensas, exigentemente afirma “assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Para perdoar uma dívida aos outros e dar-lhes esperança, é preciso que a própria vida esteja cheia dessa mesma esperança que vem da misericórdia de Deus. A esperança é superabundante em generosidade, não é calculista, não olha para a contabilidade dos devedores, não se preocupa com o seu próprio lucro, mas tem um único objetivo: levantar os caídos, curar os quebrantados de coração, libertar de todas as formas de escravidão.

Gostaria de sugerir, no início deste Ano de Graça, três ações que podem devolver a dignidade à vida de populações inteiras e colocá-las de novo no caminho da esperança, para que a crise da dívida possa ser ultrapassada e todos possam voltar a reconhecer-se como devedores perdoados.

Antes de mais, retomo o apelo lançado por São João Paulo II, por ocasião do Jubileu do ano 2000, para que se pense numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações. Reconhecendo a dívida ecológica, os países mais ricos sentir-se-ão chamados a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para perdoar as dívidas dos países que não estão em condições de pagar o que devem. Certamente, para que não se trate de um ato isolado de beneficência, que corre o risco de desencadear de novo um ciclo vicioso de financiamento-dívida, é necessário, ao mesmo tempo, desenvolver uma nova arquitetura financeira que conduza à criação de um acordo financeiro global, baseado na solidariedade e na harmonia entre os povos.

Além disso, faço apelo a um firme compromisso de promover o respeito pela dignidade da vida humana, desde a concepção até à morte natural, para que cada pessoa possa amar a sua vida e olhar para o futuro com esperança, desejando o desenvolvimento e a felicidade para si e para os seus filhos. Com efeito, sem esperança na vida, é difícil que surja no coração dos jovens o desejo de gerar outras vidas. Particularmente neste sentido, gostaria de convidar, uma vez mais, para um gesto concreto que possa favorecer a cultura da vida. Refiro-me à eliminação da pena de morte em todas as nações. Em realidade, esta punição, além de comprometer a inviolabilidade da vida, aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação.

Atrevo-me também a lançar um outro apelo às jovens gerações, recordando São Paulo VI e Bento XVI, neste tempo marcado pelas guerras: utilizemos pelo menos uma percentagem fixa do dinheiro gasto em armamento para a criação de um fundo mundial que elimine definitivamente a fome e facilite a realização de atividades educativas nos países mais pobres que promovam o desenvolvimento sustentável, lutando contra as alterações climáticas. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz.


Não haverá paz duradoura sem mudanças profundas

Mudemos os corações e as estruturas para que haja paz duradoura | 579 | 01.01.2025 | Lucas 2,16-21

Na celebração de hoje se entrelaçam três eventos: o começo do ano civil; a maternidade de Maria; a Jornada Mundial pela Paz. Nascendo de Maria, o Filho de Deus se igualou a nós, resgatou-nos do domínio das instituições, e nos presenteou com liberdade. O Espírito Santo nos deu a possibilidade de clamar a Deus em nossas aflições e de relacionarmo-nos com ele como filhos.

Contemplemos a chegada dos pastores à gruta Belém. Eles ficam impressionados com o que veem, e comparam com aquilo que tinham ouvido. Eles compreendem o mistério de um Deus a quem não apraz o poder, a grandeza, os cortejos de acólitos. Deus se alegra com a solidariedade de quem se faz próximo dos deslocados. Eles louvam, glorificando a Deus, por tudo o que veem e ouvem.

Acolhido por nós e no meio de nós, Jesus de Nazaré pacifica o mundo criando relações novas, baseadas na justiça e na fraternidade. Ele cumpre a promessa de Deus e realiza a esperança da humanidade através dos homens e mulheres de boa vontade, daqueles que não se resignam à paz aparente. Ele dirige nossos passos no caminho da paz, graças ao seu coração misericordioso.

Na sua mensagem para o dia de hoje, o Papa Francisco diz que “cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade”. E diz que hoje se entrelaçam diversos desafios sistêmicos que nos interpelam.

Ele se refere especialmente “às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar”. Segundo o Papa, “todos estes são fatores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade”.

Por isso, no início deste ano, precisamos “escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus”. Atos esporádicos de filantropia não serão suficientes, diz o Papa. “São necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura”.

 

Meditação:

§ Observe os pastores, e aprenda com eles a reconhecer e louvar a Deus pelos sinais da sua presença

§ O que poderíamos fazer para promover e enraizar a paz em nossa convivência na primeira semana do ano 2025?

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A glória de Deus que brilha no céu vem à terra como vida plena

A glória de Deus que brilha no céu vem à terra como vida plena | 579 |31.12.2024 | João 1,1-18

Os conceitos que aparecem no evangelho de João são vários: Palavra, Vida, Graça e Glória. No contexto original, não são palavras abstratas, têm conteúdo claro. Enquanto Palavra, Jesus, o filho de Maria e de José, é a exteriorização da interioridade de Deus, e esse mistério é uma boa notícia que produz felicidade. A Palavra de Deus assume a carne humana como lugar no qual podemos encontrar, tocar e acolher o próprio mistério de Deus.

Jesus, que nasceu em Belém e viveu como carpinteiro em Nazaré, é portador da Vida plena, do “bem viver” que todos os povos buscam sem descanso. Nele, a vida é revelada e doada como comunhão profunda com o mistério de Deus, comunhão solidária com todas os pobres e vítimas, e comunhão graciosa com todas as criaturas, comunhão generosa entre as gerações e povos.

Na pessoa de Jesus de Nazaré, vemos também a Graça de Deus. Nele fica claro que Deus não é um cobrador de dívidas, um policial ou um juiz, mas um irmão e hóspede no qual se mostram de modo inequívoco a gratuidade. A lei e a cobrança vêm das velhas instituições, mas a Graça e a Verdade nós as recebemos por Jesus Cristo. Ele é a gratuidade de Deus em pessoa! Gratuidade gera gratuidade, e é isso que nos salva de uma vida medíocre, controlada, calculada, entesourada...

A palavra Glória significa “peso”, importância, valor interior de uma pessoa, e isso se revela nas suas ações. Por isso, manifestar a glória de Deus significa testemunhar sua ação libertadora, prosseguir sua ação humanizadora, reconhecer sua santidade nos acontecimentos históricos.  As metáforas da luz e da glória são usadas para ilustrar o esplendor e a vitória final de Deus. 

A glória de Deus se manifesta de modo insuperável em Jesus crucificado, na sua fidelidade à humanidade. Na humanidade de Jesus vemos a glória de Deus. Ele não recebe essa glória ou peso por milagre ou presente dos céus, mas a cultiva na compaixão. Os discípulos de Jesus são glorificados na medida em que participam do dinamismo do seu amor ou paixão pelo mundo. Façamos valer esta verdade, e então teremos um ano novo, pois a glória de Deus é o ser humano vivo e liberto.

 

Meditação:

§ Releia o texto lentamente, sublinhando e detendo-se nas imagens que João utiliza para falar de Jesus, nascido em Belém

§ Procure intuir como aquela cena da estrabaria, em meio a ovelhas e pastores, transparece nessas palavras usadas por João

§ Que palavras mais atuais e próximas de nossa experiência poderíamos buscar para apresentar Jesus às pessoas de hoje?

§ Detenha-se no versículo 14 (“A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós”) e o contemple na cena do presépio

Dia Mundial da Paz (02)

Uma mudança cultural: somos todos devedores

O evento jubilar convida-nos a empreender várias mudanças para enfrentar a atual condição de injustiça e desigualdade, recordando-nos que os bens da terra não se destinam apenas a alguns privilegiados, mas a todos. Pode ser útil recordar o que escreveu São Basílio de Cesareia: “Mas que coisas, diz-me, são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Se dissesses que te veio por acaso, estarias a negar Deus, a não reconhecer o Criador, e não estarias grato ao Doador”. Quando não há gratidão, o homem deixa de reconhecer os dons de Deus. Mas o Senhor, na sua infinita misericórdia, não abandona os homens que pecam contra Ele: antes, confirma o dom da vida com o perdão da salvação, oferecido a todos mediante Jesus Cristo. Por isso, ensinando-nos o Pai Nosso, Jesus convida-nos a pedir: “Perdoa-nos as nossas ofensas”.

Quando uma pessoa ignora a própria ligação com o Pai, começa a nutrir um pensamento de que as relações com os outros podem ser regidas por uma lógica de exploração, em que o mais forte pretende ter o direito de prevalecer sobre o mais fraco. Tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada, o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a atual crise da dívida, que aflige vários países, especialmente no Sul do planeta.

Não me canso de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar indiscriminadamente os recursos humanos e naturais dos países mais pobres para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados. A isto se acrescenta que várias populações, já sobrecarregadas pela dívida internacional, vejam-se obrigadas a suportar também o peso da dívida ecológica dos países mais desenvolvidos. A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda, desta lógica de exploração que culmina na crise da dívida. Inspirando-me neste ano jubilar, convido a comunidade internacional para que atue no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça.

A mudança cultural e estrutural para superar esta crise ocorrerá quando finalmente reconhecermos que somos todos filhos do mesmo Pai e, perante Ele, confessarmos que somos todos devedores, mas também todos necessários uns aos outros, segundo uma lógica de responsabilidade partilhada e diversificada. Poderemos descobrir, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros.

Maria, Mãe de Deus - Ano Novo (Pagola)

ALEGRIA PARA TODO O POVO

Há coisas que só as pessoas simples sabem entender; verdades que só o povo é capaz de intuir; alegrias que só os pobres podem desfrutar. Assim é o nascimento do Salvador em Belém. Não é algo para os ricos e abastados, um acontecimento que só os cultos e os sábios podem entender; algo reservado às minorias selecionadas. É um acontecimento popular, uma alegria para todo o povo.

Ainda mais. São pobres pastores, considerados na sociedade judaica como pessoas pouco honradas, marginalizados por muitos como pecadores, os únicos que estão acordados para ouvir as notícias. Também hoje é assim, embora, com frequência, os mais pobres e marginalizados tenham ficado tão longe da nossa Igreja.

Deus é livre. Por isso é acolhido mais facilmente pelo povo pobre do que por aqueles que pensam poder adquirir tudo com dinheiro. Deus é simples e está mais próximo das pessoas humildes do que daquelas que vivem obcecadas por ter sempre mais. Deus é bom, e é melhor entendido por aqueles que sabem amar-se como irmãos do que por aqueles que vivem egoisticamente, presos ao seu bem-estar.

Continua sendo verdade o que sugere o relato do primeiro Natal. Os pobres têm um coração mais aberto a Jesus do que aqueles que vivem satisfeitos. O seu coração contém uma sensibilidade ao Evangelho que nos ricos foi muitas vezes atrofiada. Têm razão os místicos quando dizem que para acolher Deus é necessário esvaziar-nos, despojar-nos e tornar-nos pobres.

Enquanto vivermos procurando a satisfação dos nossos desejos, alheios ao sofrimento dos outros, conheceremos diferentes graus de excitação, mas não a alegria que se anuncia aos pastores de Belém. Enquanto continuarmos a alimentar o desejo de posse, não se poderá cantar entre nós a paz que foi cantada em Belém.

A ideia de que se pode fomentar a paz enquanto se alentam os esforços de posse e lucro é uma ilusão. Teremos cada vez mais coisas para desfrutar, mas elas não preencherão o nosso vazio interior, o nosso tédio e solidão. Alcançaremos conquistas cada vez mais notáveis, mas crescerá entre nós a rivalidade, o conflito e a competição implacável.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

domingo, 29 de dezembro de 2024

Os olhos da fé veem Deus na fragilidade de um bebê

Os olhos limpos da fé são capazes de ver Deus na fragilidade de um bebê| 578 |30.12.2024 | Lucas 2,36-40

O texto de hoje á parte do relato natalino mais amplo. Ontem, festa da Sagrada Família e abertura do Ano Santo, meditamos o texto que vem na sequência deste de hoje, e vimos como Jesus, nascido num ambiente familiar e educado nas tradições religiosas e culturais do seu povo, não fica refém desses círculos. Ele veio para ocupar-se das coisas ou da casa do seu e nosso Pai, do Reino de Deus. Inicialmente, José e Maria não conseguem entender isto, mas o farão lentamente.

Hoje, é-nos oferecida à meditação a bela cena do encontro da Família de Nazaré (ainda no templo, onde fora apresentar Jesus e inseri-lo no povo de Deus) com uma mulher idosa e profetiza chamada Ana. Ela é viúva e piedosa, dedicada a Deus e às suas promessas. O testemunho dela completa e confirma o testemunho do velho Simeão: ela proclama que Jesus representa a redenção do povo de Deus. Não é uma conclusão lógica diante de um menino, mas uma visão profética.

Ana é a única profetiza nomeada como tal no Novo Testamento. No Antigo Testamento aparecem apenas duas profetizas: Hulda e uma anônima, apresentada como a mulher de Isaías. Notemos também que, nas tradições do povo de Israel, a vida longa de uma pessoa era considerada sinal de maturidade e de sabedoria. E Ana havia alcançado 84 anos de vida, a maioria deles dedicados à oração e ao jejum, expressões típicas da piedade sincera e exemplar.

Em Ana aparece o perfil da viúva cristã. Sua comunhão com Deus desenvolve a sensibilidade e o discernimento que a fazem capaz de identificar a realização das mais nobres promessas de Deus naquele bebê frágil, filho de um casal de galileus, olhados com suspeita pelos judeus que viviam em Jerusalém e falavam em nome do templo. Sua convicção e sua fé a movem a louvar a Deus pelo cumprimento de suas promessas de modo tão inesperado.

Simeão e Ana, cada um a seu modo e com palavras diversas, nos convidam a ver um novo sentido por trás dos ritos tradicionais e uma força inaudita nas criaturas mais frágeis. A pertença a Israel e ao templo, assim como a adesão fiel aos seus ritos, não asseguram a presença salvadora de Deus. Em Jesus, a salvação de Deus chega a todos os povos, e passa pela concretude dos gestos de amor e compaixão e pela vida frágil e sofredora. Com ele, precisamos “descer a Nazaré” e crescer em todos os sentidos. O templo, com suas leis e ritos, não é espaço propício de crescimento...

 

Meditação:

§   Releia o texto lentamente, detendo-se nos personagens, nos gestos, nas atitudes e nas palavras deles

§   Perceba nas palavras e atitudes de Ana sinais da vida e da missão do Jesus adulto e dos cristãos

§   Com que palavras, atitudes e sentimentos falamos do nosso encontro com Jesus aos homens e mulheres de hoje?

Dia Mundial da Paz (01)

Perdoa-nos as nossas ofensas, concede-nos a tua paz!

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O 58º DIA MUNDIAL DA PAZ (01.01.2025)

 

Na escuta do grito da humanidade ameaçada

Na aurora deste novo ano que nos é dado pelo nosso Pai celeste, um tempo jubilar dedicado à esperança, dirijo os meus mais sinceros votos de paz a cada mulher e a cada homem, especialmente àqueles que se sentem prostrados pela sua condição existencial, condenados pelos seus próprios erros, esmagados pelo julgamento dos outros e já não veem qualquer perspectiva para a sua própria vida. A todos vós, esperança e paz, porque este é um Ano de Graça, que vem do Coração do Redentor!

Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu, um acontecimento que enche os corações de esperança. O jubileu remonta a uma antiga tradição judaica, quando a cada quarenta e nove anos o toque da trombeta anunciava um tempo de clemência e de libertação para todo o povo. Este apelo solene deveria ecoar por todo o mundo, a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça. O toque da trombeta recordava a todo o povo, aos ricos e a quem tinha empobrecido, que ninguém vem ao mundo para ser oprimido: somos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai, nascidos para ser livres.

Também nos dias de hoje, o Jubileu é um acontecimento que nos impele a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Em vez da trombeta, no início deste Ano de Graça, nós gostaríamos de estar atentos ao desesperado grito de ajuda que, como a voz do sangue de Abel, o justo, se eleva de muitas partes da terra e que Deus nunca deixa de escutar. Nós, por nossa vez, sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que São João Paulo II definiu como estruturas de pecado, porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.

Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistêmicos, distintos, mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são fatores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.

No início deste ano, portanto, queremos escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns atos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Jesus se faz peregrino de memórias e esperanças

Com José e Maria, Jesus se faz peregrino de memórias e esperanças | 577 |29. 12.2024 | Lucas 2,41-52

Maria e José levam Jesus, ainda adolescente, a Jerusalém e, como família, participam, com o povo todo, da festa que recorda e atualiza a superação da escravidão e a constituição de um povo solidário e livre. É uma família a mais, uma família entre outras famílias em meio à caravana de romeiros que peregrinam cheios de boas memórias e dinamizados pela esperança.

Mas nessa peregrinação, José e Maria descobrem que precisam superar o simples e costumeiro cumprimento das tradições, por mais relevantes que sejam, assim como o estreito limite da convivência e da educação familiar. Eles precisam, mesmo sem entender tudo, ajudar o filho a crescer na sua vocação e missão, a se dedicar ao Reino de Deus, às coisas do seu e nosso Pai.

Unidos pelos laços de um amor profundamente humano, e dentro do horizonte das tradições do povo que lhes dava identidade e coesão, José e Maria avançam no escuro da fé. Como Abraão, eles se lançam na estrada da fé sem saber claramente onde chegarão. Também eles ousam acreditar, caminhar orientados apenas pela fé, e isso lhes é creditado como justiça. Eles não andam a esmo, são peregrinos de esperança.

Nesta peregrinação existencial e espiritual, Maria e José tiveram que se abrir sempre mais à novidade que Deus manifestava através do filho que lhes fora confiado. E os evangelhos fazem questão de sublinhar que Nazaré é o lugar onde Jesus cresce, se fortalece e adquire sabedoria. José e Maria educam o filho longe do ambiente glorioso e sedutor do templo, e próximo do povo cansado e abandonado, mas sonhador. Jesus cresce na medida em que lança raízes na história e nas lutas do seu povo.

Para a Sagrada Família, morar em Nazaré não foi algo casual. Esta opção consciente significou assimilar a esperança cultivada pelo “resto de Israel”, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou também não se afastar das raízes populares, do vínculo com os pobres, assumir resolutamente o caminho que leva à periferia e privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a vida normal de todas as pessoas. Em Nazaré, Jesus absorve a seiva das esperanças do seu povo a partir da periferia. Aprende a ser peregrino de esperança. Eis aqui uma perspectiva que as famílias discípulas missionárias de Jesus jamais podem abandonar!

 

Meditação:

·        Releia e reconstrua a cena da Sagrada Família no templo e no caminho, observe as ações de Jesus e as reações de Maria, José e dos doutores

·        Qual poderia ser o sentido da expressão “por quê me procuravam? Não sabiam que devo ocupar-me da casa/coisas do meu Pai”?

·        O que esta cena, e estas palavras de Jesus, nos ensinam sobre a vida familiar em nosso tempo?

·        Em Jerusalém Jesus brilhou e se distanciou dos pais, mas foi em Nazaré que ele cresceu: o que isso significa?

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Os sofrimentos impostos aos pequenos sempre clamam aos céus

Os sofrimentos impostos aos pequenos sempre clamam aos céus | 576 |28. 12.2024 | Mateus 2,13-18

Na festa litúrgica dos Santos Inocentes somos chamados a proclamar com a vida aquilo que professamos com os lábios, como o fizeram as crianças vitimadas por Herodes. Nos sonhos, José discerne a vontade de Deus reforça a consciência da própria vocação: tomar conta da vida do Menino e protegê-lo ante todos os riscos e ameaças. E nos convoca a fazer o mesmo, em nome do filho Jesus.

José, o carpinteiro de Nazaré e marido de Maria, parece encontrar luz e inspiração em outro José, aquele que fora vendido pelos irmãos invejosos aos comerciantes no Egito: ambos são sonhadores. As preocupações que atordoam José durante o dia se transformam em sonhos à noite. E é neles que o pai e protetor de Jesus toma consciência das urgências e mostra-se obediente à vontade de Deus.

Herodes não admite que alguém desobedeça às suas ordens. A fúria que dorme sob o disfarce da piedade é acordada por qualquer sinal de insubmissão. A raiva contra os magos, que o enganam depois de encontrar Jesus, se volta contra as crianças. Com medo de um concorrente ao trono, Herodes opta pelo extermínio dos inocentes. Na verdade, seu poder tem pouca força e pouca credibilidade.

O medo dos poderosos sempre faz vítimas, e as crianças são atingidas em primeira linha. Como diz Mateus, citando o profeta Jeremias, a violência sofrida pelos inocentes é um grito que brada aos céus, provoca um lamento inconsolável. O sofrimento e a violência jamais derivam da vontade de Deus, mas chegam até ele, e ele não se faz indiferente.

A Igreja acolhe o testemunho das crianças de Belém e as reconhece como mártires. Elas nem haviam conhecido Jesus, nem aderido ao seu caminho. Mas tiveram a vida destruída por causa de Jesus Cristo. Mesmo sem dizer uma palavra, confessaram com o sangue inocente a chegada do Filho de Deus.

A liturgia de hoje não é um lamento, mas um convite à confiança. A comunidade, que canta seu salmo no templo, não cansa de repetir: “Bendito seja o Senhor”. A fé que herdamos das primeiras comunidades nos diz que aqueles que, como Herodes, semearam a morte dos inocentes, não duram muito (cf. Mt 2,20). A fé viva da comitiva daqueles que aderem a Jesus revela que eles têm pés de barro.

 

Meditação:

§ Releia o texto lentamente, detendo-se nos personagens e nas diversas cenas que o compõem

§ Procure deter-se nas palavras do mensageiro de Deus e na obediência despojada e pronta de José

§ Que sentido têm as escrituras citadas para os milhares de brasileiros feridos pela morte de seus entes queridos pela Covid-19 e pelas enchentes?

§ De que iniciativas somos capazes e onde buscamos inspiração para enfrentar as situações que urgem uma intervenção corajosa?

Ainda sobre o Natal

E então, o que restou do Natal?

O Natal já é passado, embora as festas continuem. Desta vez não se prolongarão até o carnaval, mas ainda temos o Ano Novo e, para muitos, as desejadas e merecidas férias. O clima não é de avaliações e balanços, mas eu pergunto: e então, o que resta do Natal recém-celebrado? A resposta depende daquilo que cada um celebrou no dia 25...

Para quem viveu o Natal como uma festa comercial e gastronômica, para quem fez reverência ao Papai Noel, passados os dias de consumo e comemoração, o que resta é mais contas a pagar, menos dinheiro no bolso, uns quilos a mais no corpo, uma árvore artificial num canto da sala e muito material descartado.

Para outros, entre os quais estão aqueles que dispensaram a prudência, junto com o cansaço provocado por trajetos longos e estradas abarrotadas de veículos, a lembrança dos riscos e sustos e, por vezes, resta o sabor amargo de algum acidente sofrido, provocado ou testemunhado. E para os poucos que apostaram no velhinho-propaganda, o que resta é uma boa soma de dinheiro no banco.

Talvez você diga que estou exagerando nas tintas, que as coisas não são bem assim. Eu respondo reconhecendo que carregar as tintas é um modo de chamar a atenção para algo deveras importante. Na verdade, quero destacar a necessidade de viver o Natal como um tempo de graça, tempo no qual se manifesta a bondade de Deus e ressoa o chamado a viver com moderação, justiça e piedade (cf. Tt 2,11-12).

Para quem viveu o Natal como preparação e encontro com o Menino Deus envolto em faixas e deitado na manjedoura, os saldos não são bancários e os frutos não são amargos, nem fugazes. Faço parte dessa porção da humanidade, pois estou inscrito entre os cristãos, aqueles que querem viver o Natal como a inacreditável humanização da Divindade, como entrada da Eternidade no tempo.

Para estes, as celebrações do Natal, que prosseguem até a festa da manifestação de Deus aos peregrinos estrangeiros, deixaram a certeza de que Deus continua apostando na humanidade, não obstante seus inúmeros limites e fracassos, tanto que continua fazendo-se carne e armando sua tenda entre nós. Ele é Deus conosco, por nós e em nós.

Para nós, o essencial do Natal continua, mesmo depois que os chocolates acabaram, as visitas se foram e a apelativa decoração das ruas e vitrines desapareceu. O Deus que se faz Menino e se reveste de pobres panos continua nos visitando, como pessoa que pede nosso auxílio ou como humano voluntário que estende sua mão em nosso favor.

Como diz o Vaticano II, a luz do Verbo encarnado ilumina o mistério do ser humano. Ele assume a condição humana e a torna ainda mais digna e preciosa. Pela sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se a todos os seres humanos: trabalhou com mãos humanas, pensou e agiu como ser humano, amou com um coração humano; foi realmente um dos nossos em tudo, exceto no pecado.  Revelando o mistério do Pai e de seu amor, Jesus Cristo nos revela o que é o ser humano e a grandeza da nossa vocação.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul