Memórias de uma
mula que ousa dar lições aos humanos
Meu
nome é Jérick. Sou a mula quase invisível, como muitos humanos, mas sempre
presente nos momentos decisivos da vida, como as peregrinações de José, Maria e
do filho deles. Como todos sabem, pertenço à espécie dos asinus, sou híbrida (cruza de equino com muar) e estéril, e isso é
para mim mais pesado que todas as cargas. Como todas as minhas irmãs, sou filha
de uma “mãe emprestada”, e jamais ouvirei alguém chamar-me de mãe.
Mas
não venho a estas páginas para falar das minhas próprias feridas e dores. Elas
até parecem pequenas diante de tanto sofrimento que vejo ao meu redor, desde o
modo como meus irmãos humanos tratam as demais criaturas, passando pela carne envenenada
e dilacerada da mãe terra e chegando às vítimas das guerras infames e dos
desastres mais provocados que naturais.
Aquele belo dia 10 de dezembro de 1948...
Quero
compartilhar com vocês algumas alegrias que a graça da vida me concedeu e que fazem
de mim uma peregrina da esperança. Na
verdade, sou peregrina por natureza e destino, mas o que transforma minhas
dores em renascimento e meus passos em graciosa aventura é a carga que levo:
Maria e o Bendito fruto do seu ventre. Meus olhos estão fixos neles! E, como
diz João, aquilo que vi, ouvi e toquei
com meu corpo, isso eu anuncio a vocês (cf. 1Jo 1,1-4).
Quero
contar alguns momentos dessa aventura, mas a partir de uma experiência um pouco
esquecida pelos humanos de hoje. No dia 10 de dezembro de 1948, quando tentavam
se libertar dos escombros e dos milhões de cadáveres de mais uma das
incontáveis guerras que promoveu, homens e mulheres de mente aberta e coração
generoso escreveram a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Os direitos sociais, culturais, econômicos
e ambientais vieram somente mais tarde, mas isso não diminuiu a eloquência e a
luminosidade daquele momento.
Quando
eu dei o meu sim à ordem de José e
acolhi sobre meu dorso o corpo de Maria, caprichei nos passos pelas trilhas
sinuosas que levam de Nazaré a Belém para não provocar riscos e sustos a ela e
ao “Bendito fruto” do seu ventre. E nem reclamei quando faltou água e o capim foi
insuficiente para manter o ritmo dos meus passos. Pelo silêncio que foi crescendo
e ressoando alto percebi que, com o passar do tempo, José e Maria estavam muito
preocupados.
O pão e a casa negados
Cheguei
a Belém exausta, mas feliz. A cidade cujo próprio nome dizia ser a “casa do pão”,
negou casa e pão aos meus caros passageiros. Cadê o humano direito à
hospitalidade, à segurança alimentar e à moradia? Eu e minha irmandade animal
compartilhamos com eles o que foi possível: a gruta-estrebaria e, quando o
menino veio à luz, a mesa-manjedoura e o calor dos nossos corpos. Gente
habituada a cuidar de animais se juntou a nós, e formamos uma bela família de
criaturas. Uma revoada de anjos cantava: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”. Vocês já devem ter visto aquela linda foto de família...
Fiquei
feliz e curiosa quando percebi a aproximação de pessoas que vestiam trajes e falavam
idiomas diferentes daqueles que então conhecia. Mais tarde, soube que eram sábios
estrangeiros, buscadores de Deus vindos de longe à procura de Alguém muito
especial que deveria nascer naquelas paragens, mais ou menos naquele tempo. Aquela
visita preciosa só foi possível porque a arrogância humana não havia traçado
fronteiras claras, e a identidade de ser humano era suficiente e dispensava
vistos. Afinal, eu sempre ouvi dizer que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecido como pessoa perante a lei”.
Exilados e refugiados em terras estranhas
A
curiosidade se transformou em preocupação quando aqueles “irmãos sem fronteiras”,
desobedecendo às ordens dos senhores, se recusaram a delatar o que haviam visto
e ouvido. O poderoso sentado em trono usurpado, por medo de perder seus podres
poderes, decretou a morte das crianças nascidas naquela época. Eu, atenta que
sou, percebi tudo e me aproximei de José, no meio da noite, oferecendo meu
lombo e meus passos para salvar a vida do Príncipe
da Paz.
Antes que houvesse uma declaração universal, eu
sabia que “a infância tem direito a cuidados e assistência especiais” e
que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, têm direito à
mesma proteção social”. Por isso, fiz minha parte, e me orgulho disso. Antes de
partir, ainda deixei escrito nas paredes da gruta: “Todo ser
humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” e “todo ser
humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras
de cada Estado”.
Na fronteira com o Egito, diante de guardas
sisudos e pouco afeitos a palavras, zurrei com clareza e altivez: “Toda
a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar-se de
asilo em outros países. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que
se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país”.
Ele foi chamado Nazareno!
Assim,
testemunhei os anos que meus “usuários” ou “tutores” passaram no exílio e,
mesmo com passos já inseguros pela idade, levei-os de volta à terra que os
expulsara. Carregava, orgulhosa, uma bandeira onde escrevi: “Todo ser
humano tem direito a uma nacionalidade”.
Evitando os lugares e grupos que tinham a vida dos pequenos em pouca conta,
chegamos a Nazaré, já conhecida e amada por Maria e por José. Os profetas
haviam anunciado: “Ele será chamado Nazareno” (Mt 2,23).
Ainda
tive a graça de ver, mesmo com os olhos cansados, como aquele Menino crescia em
sabedoria, liberdade e graça no ambiente humilde e nobre de uma família
camponesa (cf. Lc 2,52). Nela ele aprendeu que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião”, e que “esse direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo
ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”. E que a
dignidade da pessoa não depende de raça ou nação (cf. Lc 4,23-30).
Você
já sabe que, quando se tornou moço, Aquele menino que eu ajudara a transportar
e cuidar, ensinou nas sinagogas de Nazaré e da região que “todo ser humano
tem direito à instrução”, e esta deve proporcionar o “pleno desenvolvimento da
personalidade humana e o fortalecimento do respeito pelos direitos do ser
humano e pelas liberdades fundamentais” e promover “a compreensão, a tolerância
e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos”.
Posso dizer que Aquele que criou você e a mim,
assim como todos os seres humanos, animais, vegetais e minerais, matérias e
energias, me concedeu a graça de tocar ver com estes olhos que a terra vai
comer e ouvir com essas grandes orelhas, metáfora da burrice que não é minha
exclusividade, a manifestação graça, da
bondade e da jovialidade de Deus para a salvação de todas as criaturas. Por
isso, dentro das minhas possibilidades, procurei viver com moderação, justiça e
piedade (cf. Tt 2,11-13).
Confidência de uma tristeza que tem força de
apelo
Termino essa breve memória das maravilhas que o
Criador me concedeu testemunhar com uma pontinha de tristeza, ou, se quiserem,
com um sincero e contundente apelo. Nos tempos sombrios em que vivemos, há
muita “gente de bem”, inclusive seguidores daquele Nazareno Ungido, afirmando
que “os direitos humanos valem apenas
para os humanos direitos”. Depois de
tudo o que a humanidade provocou e sofreu, ainda teimam em negar que “o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz no mundo”.
Da
perigosa altura das suas razões irracionais – eles dizem que nós é que somos
irracionais e burros! – eles ignoram que “o desprezo e o desrespeito pelos
direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade, e que o advento de um mundo em que
mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de
viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do ser humano comum”. Gente! Tudo está interligado, e os golpes com
que ferimos a terra e tudo o que nela se enraíza, move ou habita provocam
feridas e trazem a morte dos humanos. Deus
os livre do negacionismo biocida e suicida!
Peço
desculpas por ter me alongado demais e me atrevido a ensinar a vocês, os
humanos, eu que não passo de uma mula de carga e jamais superarei minha
burrice. Assino estas mal traçadas linhas com a marca da minha pata esquerda,
aquele que está mais próxima do coração, o centro unificador e dinamizador de
tudo o que é bom e belo: Jérick de Jesus.
+ Dom Itacir Brassiani
msf
Bispo Diocesano de Santa
Cruz do Sul
3 comentários:
Parabéns e gratidão Dom Itacir por esta significativa mensagem!! Abençoado Natal com Jesus e Novo Ano 2025.
Profunda lição de vida para os humanos.
Parabéns Dom Itacir Brassiani, impressionada com a originalidade deste cântico às criaturas na celebração do Natal!
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