“Eu não posso respirar!”
A frase
sufocada, repetida e quase inaudível de George Floyd navegou rapidamente por
todo o universo virtual. Frase e imagem que, combinadas, representam um soco na boca
do estômago da sociedade estadunidense e mundial. A combinação dramática entre as palavras e a cena, na abordagem
policial, representa um choque duplo:
pelo sadismo dos agentes brancos, violência fardada e “legal”; e pela humilhação do homem negro. Por isso,
além de viralizar no mundo da Internet, a
notícia criou pés e mãos, rostos e vozes, punhos erguidos e indignação, gestos
e cartazes, faixas e mobilização – multidões em marcha pelas ruas, praças e
lugares públicos, tanto nos Estados Unidos como em outras partes.
Imagem emblemática do racismo secular
nas Américas, no Brasil e no mundo. A
Senzala caída por terra com a cara contra o duro asfalto – inerte, asfixiada,
indefesa e impotente – subjugada sob a
força truculenta da Casa Grande. Brutalidade que, longe de terminar com o longo
processo de “abolição da escravatura”, apenas mudou de roupa. Travestiu-se de legalidade para melhor oprimir,
explorar, descriminar, marginalizar e, no limite extremo, eliminar. De resto, de
um ponto de vista histórico e estrutural, enquanto
a Casa Grande acumula privilégios, e estes são intocáveis, a Senzala recebe
favores, e estes são eventuais, dependendo do humor do senhor de plantão.
Se e quando os moradores da Senzala tentam transformar os “favores” em
“direitos”, na tentativa de salvar a própria dignidade humana, vem a repressão.
Mais uma vez, a força bruta simbolizada
no capataz, no exército, na polícia. A luta do líder Zumbi, no quilombo dos
Palmares, entre tantos outros, é reflexo dessa violência institucionalizada.
Um voo de
pássaro pela sociedade brasileira, entre tantas outras, bastará para dar-se
conta de como o apartheid racial
fundiu-se com o apartheid social – duas faces da mesma moeda – para perpetuar a segregação dos povos
afro-americanos. Dificuldades de acesso à educação e ao mercado formal de
trabalho fecham-lhes outras portas relacionadas aos direitos humanos e
cidadãos. Disso resultam os proventos
inferiores para trabalhos iguais, a abordagem prepotente e arrogante de todo e
qualquer agente de segurança, o olhar desconfiado e enviesado de boa parte das
pessoas brancas (de “bem” porque de “bens”), o bullying sofrido em lugares
públicos por crianças, jovens e adolescentes, a submissão às sobras de serviços
indesejados, pesados e mal remunerados... Para não falar do preconceito e da
estigmatização.
A asfixia
de George Floyd, prolongada até a morte, tornou-se uma espécie de metáfora para o sufoco que todos nós sentimos diante da
pandemia de Covid-19. A falta de ar sufoca e pode levar a óbito os que
contraíram a doença, sufoca as famílias enlutadas, sufoca os que desejam mas
não podem colocar na mesa “o pão nosso de cada dia”. E sufoca, de alguma forma,
toda a sociedade. Todos ansiamos por sair, caminhar, respirar! Respirar não só
pelas janelas, mas ao ar livre e ao sol; respirar o olhar, o sorriso, o toque e
o abraço; respirar o encontro, o diálogo, a amizade; respirar o sonho, a busca,
a liberdade.
Ao tolher o
respiro, o coronavírus tira a vida. Mas, entre
os afrodescendentes, o grito “eu não posso respirar” é mais eloquente, às vezes
na proporção inversa de ser reprimido e silencioso. A desigualdade racial e social, que os torna mais frágeis e vulneráveis
em tempos de paz, os atinge primeiro em tempos de guerra. Números,
porcentagens, tabelas, estatísticas e gráficos, sejam eles de caráter oficial
ou oficioso, popular ou científico, mostram à exaustão que o estigma da cor da pele e da escravidão segue desencadeando
perseguição, marginalização, prisão e morte. Convém jamais esquecer que por
trás desses números, frios e abstratos, existem nomes e rostos concretos, saídos de famílias reais, tais como
George Floyd, Marielle Franco, João Pedro ou Miguel Otávio Santana da Silva, o
menino negro de apenas 5 anos, filho de uma empregada doméstica, que caiu de um
prédio e morreu por negligência da patroa, enquanto a mãe levava o cachorro
dessa última a dar uma volta. Fica no ar a pergunta: Até quando?
Pe.
Alfredo J. Gonçalves, cs
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