quinta-feira, 6 de agosto de 2020

ANO A | TEMPO COMUM | DÉCIMO-NONO DOMINGO | 09.08.2020


Deus é presença viva e companhia em todas as travessias!
A vida é uma travessia, e crer é caminhar. As travessias são sempre arriscadas e causam medo. Há quem prefira evitá-las sempre, pois pensam que o risco não compensa. São pessoas que fecham os ouvidos a todo e qualquer chamado: padres que vivem sua missão como uma atividade qualquer ou até como uma carreira; pais e famílias que se recusam a assumir a educação dos filhos para a ética e o amor; fiéis que preferem as velhas e potentes imagens de Deus ao desafio de descobri-lo na brisa leve da luta pela justiça...
Mas Deus se revela mais claramente nos movimentos de passagem que na estabilidade dos templos e dos lugares-comuns: do Egito para a terra prometida; do centro para a periferia; do eu para o nós; da aparente segurança das cavernas para o descampado estimulante da montanha; do poder para o serviço; do peso das estruturas eclesiásticas para a leveza e a criatividade do Espírito. Parece que Deus não gosta de se estabelecer: a ele agradam mais o campo aberto e as estradas que os templos e palácios!
Como nos lembram os evangelhos, os discípulos de Jesus imaginavam um Deus indiferente às necessidades dos famintos, ou com poder para resolver todas as dificuldades do povo. Esta é a imagem de Deus que predomina nas diversas religiões e em amplos setores do povo cristão ainda hoje. Mas Jesus revela-se um Deus compassivo com os pobres, um Deus que tem necessidade da nossa colaboração na sua ação libertadora. E é ele que nos convida a superar o medo e confiar na sua presença em todas as travessias.
Infelizmente, apesar dos séculos de pregação cristã, as imagens de um Deus poderoso e ameaçador, ou então nacionalista e ligado aos interesses de pequenos grupos, ainda não se apagaram da nossa memória. Ensinaram-nos que Deus se revela no poder destruidor dos terremotos, no fogo devorador das ideologias totalitárias, no mistério aterrador dos furacões, nos pesados decretos que condenam, na dura punição aos que erram, nos castigos mediante pandemias e tragédias. Segundo essa ideologia, Deus seria onipotente, onisciente e onipresente, e quanto mais poder ou saber alguém possui, mais se pareceria com Deus.
Diante de um Deus com estas características, caímos por terra ou gritamos de medo. E do ventre do medo não costuma nascer o amor que se faz dom, mas a agressividade da autodefesa ou da dominação. Um Deus com tais traços é um fantasma, uma fantasia que se abriga nas pessoas que não superaram o desejo infantil de onipotência. E esse fantasma, via de regra, está a serviço das diversas formas de dominação e de infantilização religiosa, econômica e política. Assemelham-se a Pedro, que tenta caminhar sobre as águas, revelando seu desejo de participar da presumida onipotência de Deus.
É o medo dos ventos contrários, das diferenças e dos questionamentos que gera a dúvida e nos leva a afundar, tanto em termos humanos como espirituais. O medo não nasce da verdadeira experiência de Deus, mas de uma imagem parcial ou confusa de Deus. É isso que percebemos nos discípulos no episódio da travessia do mar: a força do vento e das ondas, que fustigam a barca como a tirania dos poderosos, junto com a ideia de um Deus que caminha indiferente sobre as ondas, arranca-lhes gritos de pavor. É essa dúvida sobre a divindade de um Jesus frágil e compassivo leva Pedro a afundar apavorado.
Na carta aos Romanos, Paulo lamenta que seus irmãos de raça e sangue tenham se apegado às leis, à religião, às instituições e às promessas como se fossem um privilégio que os coloca acima dos demais seres humanos e povos, e fora das peripécias e exigências da história. Talvez seja esse o maior obstáculo aos acordos de paz em vista da justiça, tão necessários na Síria como na Venezuela e no Brasil. Isso nos lembra que filiação é um dom e uma graça que carregamos como tesouro e em vasos de barro, e jamais um privilegio ou uma propriedade. Nem todos aqueles que ostentam o título de cristãos o são de fato!
Deus, pai e mãe, presença amorosa e encorajadora em todas as humanas travessias: tu conheces a generosidade e a ambiguidade, a coragem e o medo de cada um/a de nós. A tentação continua levando-nos a te procurar no fogo, no terremoto, na ventania, nos acontecimentos que impressionam. Vem ao nosso encontro como vento calmo e benfazejo, como o calor sereno e acolhedor do colo dos melhores pais.  Socorre nossa pouca fé e cura as dúvidas do nosso coração e os desvios do nosso afeto. Ensina aos pais o cuidado para com os filhos e filhas, colocando-te entre eles e guiando-os como modelos de vida, e não como patrões e senhores. E que nossas famílias sejam escolas de comunhão e de generosidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Primeiro Livro dos Reis 19,9-13 | Salmo 84 (85)
Carta de Paulo aos Romanos 9,1-5 | Evangelho de São Mateus 14,22-33

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