Os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis, e são para todos!
A tendência é
acostumar-nos com um mundo construído à base de barreiras e privilégios. Depois
e festejarmos a queda do muro de Berlim, assistimos estupefatos e impotentes ao
muro levantado por Israel para impedir o acesso e o contato com os palestinos;
e, no lado ocidental do globo, o muro que os Estados Unidos da América
construiu na fronteira com o México, para impedir o acesso dos migrantes
latinos. Mas estes são apenas os muros mais visíveis e mais cínicos,
detestáveis como todos os outros, mas não os únicos.
Todas as barreiras e
muros são cimentados pelo medo e pela prepotência, e têm o objetivo de garantir
benefícios e privilégios e excluir os mais fracos. Por isso, são incompatíveis
com o Evangelho. Jesus rompeu com os estreitos círculos étnicos, culturais e
religiosos para que sua compaixão pudesse chegar a todas as pessoas e povos. O
evangelho de hoje nos mostra uma mulher estrangeira atuando com insistência
para que o próprio Jesus e seus discípulos se deem conta da estreiteza dos
muros étnicos e religiosos do judaísmo.
Fixemos nossa atenção
na bela e interpeladora cena descrita por Mateus. Depois de ter discutido
duramente com os fariseus e de ter enfrentado criticamente a ideologia
separatista e exclusivista que eles propagavam (Mt 15,1-28), Jesus se afasta
deste estreito círculo, como quem não quer mais conversa com eles. Desde
sempre, Jesus é ícone de uma Igreja em saída! E eis que aparece em cena uma
mulher Cananéia, uma testemunha viva e dolorida de múltiplas formas de
marginalização e exclusão.
O anonimato desta
mulher a faz símbolo de todas as pessoas que são jogadas fora dos muros que
cercam e protegem privilégios. Ela pertence a um povo que foi desapropriado da
sua terra em favor das tribos de Israel, de um povo que os judeus consideravam
amaldiçoado por Deus e destinado a ser escravo dos demais povos (cf. Gn 9,25).
Da boca do próprio Jesus ouvimos aquilo que os judeus pensavam dessa gente:
eles não passam de cães raivosos, nojentos e detestáveis.
A atitude dessa mulher
merece atenção, pois é a primeira palavra de uma mulher registrada por Mateus.
E esta palavra é basicamente um grito desesperado: “Senhor, filho de Davi, tem
compaixão de mim!” Aqui ressoa o grito de todas as mulheres e da própria
humanidade golpeada pelas barreiras que excluem, do patriarcalismo ao capitalismo.
Esta mulher vinda da margem se recusa a aceitar as barreiras que separam e
excluem, intuindo que, diante de Deus, todos são filhos e filhas, todos têm
lugar à mesa da vida.
Frente à atitude
inicial de Jesus, que parece demonstrar indiferença, e dos discípulos, que
pedem que Jesus a mande embora, a mulher insiste no seu clamor em favor
daqueles a quem tudo foi negado, e que esqueceram até o que são e o que podem.
Ela lembra a Jesus a herança de Davi, pois crê no reinado anunciado e iniciado
por ele e. Mesmo parecendo aceitar o senhorio dos grandes e as migalhas que
eles deixam aos excluídos, ela pede, e nome de todos os marginalizados, um
lugar à mesa, e não debaixo dela.
Esta mulher sem eira
nem beira, sem passaporte e sem família, possivelmente discípula de Jesus, não
se escandaliza dele, como parece ter ocorrido pouco antes com os discípulos do
sexo masculino. Por isso, ela encarna simbolicamente a abertura e a acolhida
que os marginalizados demonstram a Jesus. Argumentando que os cães têm direito
às migalhas, ela também não aceita que os bens sejam dados a um pequeno grupo
em detrimento de muitos: tanto os filhos como os cães têm direito à cidadania!
A reação final de
Jesus é formidável: ele não apenas reconstrói a personalidade da filha da Cananéia,
mas também elogia muito impressionado a exemplaridade da sua fé. Esta é a única
passagem no evangelho de Mateus em que a fé é qualificada como grande. “Mulher,
grande é tua fé!” E esta fé se mostra concretamente no enfrentamento das
barreiras étnicas, políticas, culturais, religiosas e de gênero, na
persistência frente à indiferença. Como diz o Vaticano II, a fé é a busca
soluções humanas para os problemas humanos!
Deus pai, raiz e fonte de todas as vocações, horizonte
e caminho da educação da fé: hoje te pedimos pelas pessoas consagradas. Dá a
elas a graça de serem um reflexo da tua compaixão sem fronteiras e da tua
atenção e solidariedade aos mais fracos e aos últimos da escala social. Que teu
Espírito as ajude a descobrir que sua missão se realiza na acolhida, na ternura
e no serviço, e que elas experimentem a alegria impagável de serem servidoras
da vida, mediadoras do teu amor libertador e testemunhas do Evangelho no mundo
de hoje. Nada pode estar acima do amor a Jesus Cristo e aos pobres nos quais
ele vive! Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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