Sei que este é um problema
meu, mas tem algumas coisas que, mesmo quando revestidas de piedade e gozando
de plena ortodoxia, me desolam e conseguem até me irritar. São atitudes e
práticas que soam como piedosas e perigosas traições de Jesus Cristo. E uma
delas é a antiga e duradoura mania de esvaziar o divino paradoxo de Jesus
Cristo revestindo-o e imobilizando-o com as vestes de rei e sacerdote.
Não desconheço que já nas
comunidades apostólicas encontramos indícios dessa perigosa identificação. O recorrente
uso do título Kyrios/Senhor para se referir
a Jesus é um sinal muito claro desta tendência. E todos/as conhecemos algumas
passagens, especialmente nas cartas paulinas e católicas, que aplicam a Jesus
reconhecido como Messias os títulos de rei e de sacerdote. Basta citar, a
título de ezemplo, a carta aos Hebreus e o Apocalipse de São João.
Mas o que o passar dos anos e
a ideologia do poder religioso nos fez esquecer é que, para as comunidades
apostólicas, estava absolutamente claro que o Cristo relido sob a figura do
sacerdote e do rei – expressões máximas da dignidade humana no horizonte
religioso e político daquele tempo – era aquele carpinteiro galileu, profeta e
peregrino, supeito aos olhos do templo e do império, executado exemplarmente
fora dos muros da cidade.
Toda a literatura
neotestamentária parte volta sempre a este ponto tão historicamente seguro
quanto paradoxal: aquele homem desprezado, contestado e descartado como pedra
inútil na construção do mundo do poder é a máxima expressão da madura dignidade
humana e a mais profunda e completa manifestação da divindade. Aquele que se
despojou voluntariamente de toda aparência de superioridade e se apresentou
como simples ser humano é o único senhor diante do qual todos os joelhos devem
se dobrar. Aquele homem relativizado
e reduzido a nada, a zero, pelos
poderes religiosos e políticos é o tudo
e o absoluto no qual a humanidade a
nela e se realiza plenamente.
O que me intriga e me tira do
sério é a velha e resistente prática de esquecer o estábulo de Belém, a
carpintaria de Nazaré, as estradas da Galiléia, as casas dos/as pecadores/as, as
multidões curadas e saciadas no deserto, os pobres que ouviam boas notícias, a
hipocrisia do sinédrio, a cruz da colina das caveiras, o grito sem resposta, a
sepultura tomada de empréstimo, a coragem das mulheres e demais discípulos...
para imobilizar Jesus Cristo no meio de uma nuvem de incenso e de uma muralha
de candelabros no interior dos templos. Ou então, a traição descarada que
retira Jesus da cruz e da sua cabeça a coroa de espinhos para fazê-lo sentar
num palácio e apresentá-lo sentado num trono com a coroa imperial sobre a
cabeça.
Mas ao lado, ou por detrás desta
traição mais descarada e detestável, há uma outra, mais sutil e não menos
perigosa. Trata-se do modo de demonstrar nossa fé em Jesus Cristo. Não está
suficientemente claro que Jesus pede a quem o reconhece como Messias de Deus e deseja
segui-lo conversão de mentalidade e participação ativa na sua missão de
promover uma vida abundante para todas as pessoas, começando pelo amor
preferencial aos últimos? É isso que nos é ensinado e ensinamos hoje?
Pode até ser... Mas o que pedem
e fazem na prática as diversas Igrejas cristãs é muito diferente. Tudo dá a
entender que o essencial é professar com a língua e em público que Jesus é o
Senhor, participar dos encontros de louvor e libertação, frequentar os
sacramentos, aceitar sem discutir o pesado código moral que cheira a passado e
a dominação, ler a bíblia ou rezar o terço, inclusive as mil ave-marias... Como
se Jesus Cristo fosse um milagreiro, um legislador, um sacerdote, um rei
sequioso de nobilidade, de bajulação e de poder. Não é isso uma incrível
traição de Jesus, mais detestável ainda por ser justificada em nome da piedade
e da ortodoxia?
Itacir Brassiani msf
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