A
paz que Jesus traz é uma aspiração humana e essencial.
(Is
52,7-10; Sl 97/98; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18)
A festa da noite de ontem se prolongou madrugada
adentro e na manhã de hoje tudo está mais silencioso. Aproveitemos, pois, para
compreender o sentido do Natal, colocando entre parênteses os apelos e ofertas do
mercado natalício e pedindo ajuda aos primeiros cristãos. Por trás do hino do primeiro
capítulo do Evangelho segundo João e dos primeiros versículos da carta aos
Hebreus está uma experiência concreta
e uma profissão de fé amadurecida numa
busca longa e intensa, em meio a conflitos e perseguições. O coração desta
experiência proclamada como Boa Notícia é a manifestação
da glória de Deus na vulnerabilidade
da carne humana e, nela, a oferta de paz duradoura e da libertação graciosa
e universal de Deus para todos os seres humanos, indistintamente.
“E a
Palavra se dez carne e veio habitar entre nós.”
Tudo parte da gruta de Belém e nela se sustenta. Mas
não menos viva é a memória da vida inteira de Jesus, seu anúncio e sua ação
polêmica e libertadora, sua condenação e morte na cruz dos proscritos. João tem
isso presente quando nos fala da Palavra que estava junto de Deus e que era
Deus, que é a luz que brilha e vence as trevas, que se faz carne e vem habitar
entre nós, que torna visível o Deus invisível. E o mesmo ocorre com o autor da
carta aos Hebreus, quando afirma que Jesus exprime o ser de Deus.
Recordemos a poética narração de Lucas, proclamada na
celebração da vigília da noite passada. Forçados pelo Imperador Augusto, Maria
e José tiveram que ir a Belém e, completado o tempo da gravidez e, não tendo
encontrado hospedagem, se abrigam numa estrebaria, onde Jesus é dado à luz.
Proscritos pastores descobrem o ocorrido e acorrem ao estábulo, onde encontram
um casal e um bebê envolto em panos e acomodado numa cocheira. Seria propriamente esta a glória de Deus?
“E a
Luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.”
Perguntemos aos irmãos e irmãs da primeira hora o
sentido deste acontecimento histórico. Na carta aos Hebreus, a comunidade
cristã, amadurecida às custas da perseguição e da perseverança, dá seu
testemunho afirmando que através de Jesus, nascido na pobreza e perseguido
pelos poderes políticos e religiosos, Deus
nos falou de modo definitivo. Ele é a expressão da glória de Deus e o
dinamismo que sustenta as buscas de paz e de comunhão de todo o universo.
A comunidade joanina vai na mesma linha da
comunicação, dizendo que na vida de Jesus é pronunciada definitivamente a
Palavra divina: é uma Palavra que gera dinamismos de Vida e ilumina a
humanidade; que vence as forças que a ela se opõem; que transforma os/as
escravos/as em filhos/as. Nesta Palavra feita carne humana e hóspede do mundo,
vemos a glória de Deus, o qual estabelece conosco uma aliança baseada na
gratuidade e na verdade.
“A
quantos a acolheram, deu-lhes poder de se tornarem filhos/as de Deus.”
As imagens e conceitos são diversos mas
complementares. Prestemos atenção a três delas: Palavra, Vida e Graça. Enquanto
Palavra, Jesus é a exteriorização da
interioridade de Deus, e esse mistério interior não é uma lei, uma advertência
ou uma doutrina, mas uma boa notícia
que produz felicidade. A Palavra de Deus assume a carne humana e a vida
histórica e corporal de Jesus como tenda na qual os homens e mulheres podem
encontrar, tocar e acolher o próprio mistério de Deus.
O mesmo Jesus, filho de Maria e de José, que nasceu em
Belém e viveu como carpinteiro em Nazaré, que reuniu discípulos/as e foi por
eles/as abandonado em Jerusalém, é portador da Vida plena e eterna, do bem viver desejado por todas as
criaturas. Nele, o bem viver ou a Vida
é revelada e doada como comunhão profunda com o mistério de Deus, comunhão
solidária com os pobres e as vítimas e comunhão graciosa com todas as
criaturas.
Na pessoa e no caminho histórico de Jesus de Nazaré,
vislumbramos também a Graça de Deus,
graça manifestada e encarnada. Nele recebemos a boa notícia de que Deus não é um cobrador de dívidas ou um juiz
frio e calculista, mas um irmão e um hóspede que se rege pela gratuidade e
pelo dom. A lei e a cobrança implacáveis vêm das velhas instituições, mas a
Graça e a Verdade nós as recebemos em Jesus Cristo. Nele, todos/as recebemos graças e mais graças... Ele mesmo é pura graça e
gratuidade de Deus!
“Nós
vimos a sua glória...”
Tanto o evangelho de João como a da carta aos Hebreus
fala de Jesus de Nazaré como glória.
“Ele é o explendor da glória do Pai, a expressão do seu ser”, diz a carta. “Nós vimos a sua (da Palavra feita carne)
glória, glória como do Filho único da parte do Pai”, diz João. O que esta
expressão pode comunicar sobre o Filho de Deus que se revela no presépio de
Belém, na carpintaria da Galiléia, na família de Nazaré e na via-crucis de
Jerusalém?
Em hebraico, glória
(kabôd: peso, valor, brilho) é uma
palavra que exprime a importância e o valor interior de uma pessoa, que se
revela nas ações e requer o respeito dos outros. Ver a glória de Deus significa testemunhar sua ação salvífica e
libertadora, reconhecer sua santidade nos acontecimentos históricos. A metáfora da luz é frequentemente usada para
materializar a glória de Deus, como aparece no relato do nascimento de Jesus
(cf. Lc 2,9).
A tradição cristã afirma com ousadia que a glória de Deus se manifesta de modo
incomparável e insuperável na crucifixão de Jesus, na sua fidelidade radical e
amorosa à humanidade oprimida. Sendo a cruz o desfecho de uma inteira vida
de amor, podemos dizer que na humanidade
de Jesus vemos a glória de Deus. E os discípulos/as de Jesus são
glorificados/as na medida em que participarm do dinamismo do seu amor ou paixão
pelo mundo. Eis nosso brilho, nosso peso, nosso valor.
“Todos os confins da terra puderam ver a
salvação.”
A liturgia natalina também nos ensina que universalidade e libertação são duas características essenciais do evento da
encarnação do Filho de Deus. A festa do Natal de Jesus não pode ser reduzida a
um evento voltado unicamente aos cristãos ou católicos, e menos ainda a um
sentimento ou iluminação interior, bem ao gosto do individualismo e do
misticismo pós-modernos. E não tem nada a ver também com as luzes coloridas e as
ofertas de consumo que abundam no mercado globalizado.
O profeta Isaías e o Salmo de meditação sublinham
claramente tanto o caráter universal
como a marca libertadora do
nascimento de Jesus. Somos convidados a cantar porque Deus faz maravilhas,
arregaça as mangas e põe em movimento sua salvação. E são todos os confins da terra que vêem e experimentam esta salvação, e
a terra inteira que é convocada a gritar, exultar e cantar hinos agradecidos. E
João diz que todos quantos acolhem a
Luz, podem se tornar filhos e filhas de Deus.
“Que beleza, pelas montanhas, os passos de
quem traz boas notícias...”
Mas tudo isso não pode ser apenas sermão monótono ou
doutrina abstrata. A fé que não é experiência vital se torna ideologia
escravizadora. Partindo de uma libertação vivida como esperança e experiência
de graça, o profeta Isaías se delicia contemplando os passos de quem corre
sobre as montanhas anunciando boas
notícias a um povo dominado e desolado. Ele vislumbra os guardas cantando
em coral e um povo em ruínas explodindo de alegria diante do mensageiro que
traz um edito de paz.
Pois o Natal é também a boa e definitiva notícia de
que Deus deseja e promove uma paz duradoura, para todas as pessoas e em todos
os lugares. Na sua mensagem para o Ano Novo, Bento XVI retoma o Evangelho e
proclama bem-aventurados os promotores da paz. E lembra que a paz é uma
aspiração essencial do ser humano e coincide com o anelo por uma vida mais
humana, feliz e bem-sucedida. A paz expressa o desejo e o direito humano a um
desenvolvimento integral, social e comunitário.
“Vamos
explodir de alegria...”
Diante da tua pequenez
gloriosa, Deus Menino, ajoelhamo-nos eternamente agradecidos/as. É desta glória
que todos/as necessitamos. É este brilho que todos/as buscamos de forma
inconsciente e quase desesperada. Tu nos ensinas que é armando a tenda dos
nossos sonhos e palavras em meio à humanidade peregrina que alcançamos a
liberdade e a plena realização. Obrigado por esta lição pronunciada com as
palavrfas da nossa carne. Queremos ser filhos e filhas desta luz. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário