Deus
nos quer generosos/as e livres no Amor!
(Gn
3,9-15.20; Sl 97/98; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38)
Na caminhada de simplificação que nos prepara para o
Natal, fazemos uma parada para celebrar festivamente Maria, aquela que sonha caminhos. Hoje
recordamos sua imaculada concepção e, no próximo dia 12, sua manifestação
inculturada e solidária no chão amado e sofrido da América Latina. Com a ajuda
de uma bela canção mariana proclamamos: “Imaculada, Maria de Deus, coração
pobre acolhendo Jesus! Imaculada, Maria do povo, mãe dos aflitos que estão
junto à cruz!” E por qual razão e em que sentido ela é imaculada? Maria é
imaculada porque tem um coração que é ‘sim’ para a vida, um coração que é ‘sim’
para o irmão, um coração que é ‘sim’ para Deus... Como mulher, mãe, esposa e
crente, Maria viveu em medida plena o chamado de Deus a sermos santos/as e
imaculados/as, ou seja, generosos/as e livres no amor.
“O
anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré...”
Jerusalém e seu templo suntuoso eram o endereço privilegiado
dos sacerdotes e outros personagens importantes da religião judaica. Era também
o lugar para onde o povo peregrinava ansioso por experimentar a presença, a
bênção e a glória de Deus. Para lá se dirigiam as caravanas provenientes de
todas os povoados da redondeza e de lá retornavam revigoradas em sua fé as
tribos de Javé. E lá deixavam uma miríade de comerciantes felizes com seus
lucros.
Nazaré não gozava de semelhante fama e esplendor.
Situada na desprezada região da Galiléia, suspeita de sinretismo religioso e de
mestiçagem étnica, Nazaré era absolutamente irrelevante aos olhos do sistema
religioso e político que vigorava naquelas terras. Em Nazaré habitava a jovem
Maria, prometida em casamento a José, que também devia residir nas proximidades.
Lá viveria mais tarde o carpinteiro Jesus, reconhecido como profeta e Messias
de Deus.
A história ligou estreitamente a pessoa de Maria à
vila de Nazaré. Mas a fé a ligou intrinsecamente ao mistério do filho que gerou.
Sem a referência a Jesus, Maria não teria saído do anonimato. E mesmo hoje, se
a desligarmos de Jesus Cristo, corremos o risco de cair prisioneiros de um complexo
afetivo-sexual mal resolvido. Todo o significado que Maria tem para nossa fé
cristã deriva da sua relação com Jesus e com o Reino de Deus que ele anunciou: ela
é mãe, educadora, discípula e apóstola.
“A
serpente enganou-me...”
Maria, aquela que têm um coração imaculado e foi
concebida de modo imaculado: que relevância e significado tem essa afirmação
dogmática e litúrgica para as urgentes lutas pela emancipação e pela dignidade
dos homens e mulheres de hoje, para as lutas dos oprimidos, para a complexa
emergência do outro mundo possível? Que sentido tem este dogma proclamado por
Pio IX, no longínquo 1854, para um tempo no qual Deus foi banido ou reduzido aos
estreitos limites da vida privada e o próximo desapareceu num mar de relações
líquidas e descomprometidas?
Para falar da concepção de Maria usamos uma metáfora:
a imagem da mancha escura numa superfície clara. É evidente que essa mancha ou
mácula está relacionada com o pecado. Pecado
é aquilo que destrói a originalidade, compromete a beleza e diminui a qualidade
da pessoa, da sociedade e da vida em geral. A raíz e origem do pecado é a inconformidade com a
condição de ser incompleto e necessitado de plenitude, e a consequente ambição
de bastar-se a si mesmo, de negar a alteridade e dispensar o próprio Deus. Essa
é a sedutora promessa da serpente!
O que hoje torna presente e operante essa mácula? Não
seria a mórbida violência que se expressa nos atentados terroristas e que vem
preparada ‘pedagogicamente’ pelos filmes ‘de ação’ e pelos telejornais doentes
que se esmeram em sublinhar a iraccionalidade da vida humana? E o que dizer da
‘fé cega’ na excludente e cruel lógica do mercado, que se mostra ‘faca amolada’
e sacrifica povos inteiros? Não estaria presente também no desesperado processo
de fechamento do indivíduo em si mesmo, considerando o outro seu inferno ou
algo irrelevante?
“Encontraste
graça junto de Deus.”
Aos 8 de dezembro de 1854, em nome do povo de Deus,
o Papa Pio IX definiu solenemente: “Com a autoridade de Nosso Senhor Jesus
Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a nossa, declaramos,
pronunciamos e definimos a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria,
no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus
onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi
preservada imune de toda mancha de pecado original. Essa doutrina foi revelada
por Deus e, portanto, deve ser sólida e constantemente crida por todos os
fiéis.” E disse que fazia isso com o objetivo de honrar a Deus e dinamizar a fé
cristã.
Esta afirmação dogmática da Igreja deseja
sublinhar que, em Maria de Nazaré, a graça de Deus foi vitoriosa frente a todas
as forças de fechamento, indiferença e violência. E isso não por esforço
pessoal nem por distanciamento dos complexos desafios que tecem a vida humana e
a trama social. Seu caráter imaculado não deriva de uma suposta fuga da
história – pois isso seria exatamente uma mácula à sua humanidade! – mas da sua
profunda abertura ao mistério inspirador e orientador de Deus. Maria é
imaculada porque amou como ninguém a José, a Jesus, ao seu povo, a Deus.
Se é verdade que em Maria a condição imaculada
está relacionada com sua virgindade, não podemos esquecer o significado
antropológico e teológico dessa virgindade. Não se trata simplesmente de uma
questão biológica, mas da expressão de sua radical pobreza conjugada com a fé,
a abertura e a disponibilidade a Deus e à sua vontade. E isso é exatamente o
oposto do pecado que macula a vida e o mundo. Dizendo ‘sim’ a Deus Maria disse e
sustentou um ‘não’ às diversas formas de pecado, mesmo àquelas revestidas de
roupagem de piedade religiosa.
“Fomos predestinados a ser os primeiros
a pôr em Cristo nossa esperança.”
Diante das palavras que a saúdam como ‘cheia de graça’
e afirmam que Deus está com ela, Maria se pergunta o que isso queria dizer. E
nós continuamos esse questionamento, perguntando-nos qual é a mensagem positiva da imaculada conceição de Maria para os
homens e mulheres do nosso tempo. Ou esse seria um privilégio exclusivo de
Maria, e não diria nada a nós, a não ser que Maria é ‘fora de série’, intocada
pelas contingências humanas?
De forma resumida e programática, podemos dizer que aquilo que afirmamos de Maria, de algum modo
é extensivo a todos os homens e mulheres de boa vontade. No exultante hino
que Paulo recolhe na Carta aos Efésios, proclamamos claramente que, em Cristo,
Deus nos escolheu “para que sejamos santos/as e imaculados/as no amor”. Todos/as
somos vocacionados/as a uma vida imaculada, e que o amor – esse esquecimento de
si em benefício do outro – é o solvente capaz de eliminar a ‘mancha’ que ameaça
a verdade, a bondade e a liberdade das nossas relações, concepções e projetos.
E não podemos esquecer que no centro de tudo está a
geraçã do Novo Adão, da Nova Criatura, do Filho de Deus. Não
podemos permanecer obcecados por Maria e suas supostas perfeições, quando nela
tudo remete a Jesus Cristo, Aquele cuja vida foi uma pró-existência. Maria nos toma pela mão e nos conduz ao Filho, ao
centro da sua vida e centro da vida cristã. E nos acompanha na bela e exigente
aventura de seguir seus passos, assimilar seu Sonho e continuar sua luta.
“Eis aqui
a serva do Senhor!”
Maria dá seu consentimento ao Anjo dizendo que é a
(e não apenas uma) serva do Senhor (e de ninguém mais!). Depois de se mostrar
atenta e reflexiva diante da proposta de Deus, ela afirma sua disponibilidade
de viver e agir como servidora. É assim que ela se mostrará imaculada e
contribuirá para limpar as ‘máculas’ do tecido social e eclesial, começando
pela terrível mancha do patriarcalismo.
Entreguemo-nos ativa e lucidamente ao dinamismo do
serviço que abraça a ternura e a solidariedade e colaboremos alegremente na
inegociável missão de devolver às pessoas sua condição de ‘cheias de graça’ e
de encanto. E digamos com as comunidades cristãs: Ave, Maria, cheia de graça! O Senhor esteja convosco! Bendita sois vós
entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus! Santa Maria, mãe
de Deus! Rogai por nós, pecadores/as, agora e na hora da nossa morte. Amém!
Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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