Arturo Paoli: um século de profecia
José Lisboa Moreira de Oliveira
No dia 30 de
novembro passado Arturo Paoli completou um século de vida. Nascido em Lucca, na
Itália, Arturo Paoli é autor de mais de cinquenta livros, traduzidos em várias
línguas e de milhares de artigos publicados em diversas revistas. Começou a
escrever e a fazer conferências em 1933. Viveu na própria pele a experiência
dramática das duas grandes guerras mundiais, tendo assistido por diversas vezes
cenas horríveis das brutalidades cometidas pelo fascismo e pelo nazismo. Aos
vinte e cinco anos de idade decidiu ser padre, entrando no seminário diocesano
de sua terra natal. Foi ordenado presbítero no dia 23 de junho de 1940, quinze
dias antes de Mussolini apoiar o nazismo, levando a Itália a entrar em guerra.
Durante a segunda guerra mundial ajudou as vítimas do conflito, inclusive
hebreus perseguidos pelos alemães e pelos fascistas. Por essa razão, em 29 de
novembro de 1999, recebeu na embaixada italiana de Brasília o título de “justo
entre as nações” e seu nome foi inscrito no “jardim dos justos” de Jerusalém,
junto com todos aqueles que o Estado de Israel reconhece como “justos” diante
dos horrores do Shoah (Holocausto).
Já desde os
primeiros anos do exercício do ministério presbiteral Arturo se revelou um profeta incômodo. Em 1949, a pedido do
então subsecretário de Estado do Vaticano Giovanni Battista Montini (futuro
papa Paulo VI), assumiu o encargo de vice-assistente da Juventude de Ação
Católica (JAC). Para tanto se transferiu para Roma. Uma das primeiras ações de
Arturo foi estimular os jovens a participar ativamente da vida política com
autonomia e liberdade, mesmo não deixando de lado a função dos católicos neste
espaço significativo. Esta sua iniciativa levou a um confronto direto com a
presidência da Ação Católica e com o próprio papa Pio XII. Arturo foi acusado
de ser o responsável pelo conteúdo de um artigo assinado por outro autor e por
isso foi afastado da direção da Ação Católica, apesar da intervenção de
Montini.
Como
“castigo” por sua rebeldia Arturo foi nomeado capelão dos navios que
transportavam emigrantes italianos para a América Latina. Numa dessas viagens
teve contato com o quase desconhecido grupo dos Irmãozinhos de Charles de
Foucauld. Ficou fascinado pelo carisma do grupo e depois de quarenta anos de
idade iniciou o noviciado no deserto de El Abiodh na Argélia. Aos 48 anos de
idade foi enviado pela comunidade dos Irmãozinhos para a Argentina. De início
não foi fácil para um europeu se inculturar numa realidade bem diferente. Mas o
contato com a realidade sofrida dos pobres terminou por provocar nele uma
verdadeira conversão. Paoli, antes um nostálgico da sua Itália, assume para
valer a causa dos oprimidos e com ela se identifica plenamente. Por isso a
ditadura civil-militar que se instaurou na Argentina nos anos 1970 passou a
considerá-lo um inimigo a ser eliminado. Por essa razão a comunidade dos
Irmãozinhos achou melhor transferi-lo para Monte Carmelo na Venezuela. Aqui
Arturo descobre de modo definitivo o significado da sua humanidade: o amor, a
responsabilidade e o cuidado se tornaram os principais elementos da sua nova
identidade.
Em meados
dos anos 1980 Paoli se transfere para o Brasil. Depois de alguns anos vividos
no Rio Grande do Sul se estabeleceu em Foz do Iguaçu no Paraná, onde viveu
acampado nas favelas e entre os sem-terra até 2005, quando voltou para a Itália.
Em 2000 recebeu um convite para participar em Roma do Jubileu dos Idosos e
fazer uma saudação ao papa João Paulo II. Em uma carta aberta recusou o convite
dizendo claramente que, em consciência, não podia dirigir uma palavra de
saudação a um papa que destruiu a Igreja dos pobres, puniu teólogos
comprometidos com a causa do povo e nomeou bispos ultraconservadores que
sistematicamente destruíram experiências significativas de Igreja, como, por exemplo,
as comunidades eclesiais de base. Atualmente Arturo vive em Lucca, sua terra
natal, como capelão de uma capelinha situada nas colinas que circundam a
cidade. A capelinha é visitada constantemente por uma multidão de pessoas,
especialmente de jovens, proveniente de várias partes do mundo que procuram
Arturo, pois o veem como referência segura sobre a qual depositar suas
inquietações e esperanças. Seu último livro La
pazienza del nulla (A paciência do nada) publicado em maio de 2012 já está
na quarta edição.
Não conheço
pessoalmente Arturo Paoli. Conheço-o através de seus escritos que passei a
“devorá-los” desde 1980, quando, participando de um retiro, o pregador fez
referências ao seu livro Camminando
s’apre cammino (Caminhando se abre caminho) no qual Paoli relata a sua
experiência na Venezuela, especialmente seu encontro com Gaudy, uma mulher
vista apenas como objeto sexual por seu homem, mãe de filhos sem pai e
trabalhadora incansável. A partir de então comecei a ler todos os livros de
Arturo que encontrava. Em seus escritos encontrei referências das quais
precisava para continuar firme na opção por uma Igreja da Libertação e pelos
pobres. Em muitos momentos da minha vida os escritos de Paoli me ajudaram a destravar
o que parecia bloqueado numa Igreja que a partir de 1978 começa sua guinada
para a direita e para o conservadorismo.
O que mais
me admira em Arturo Paoli é a sua alegria
de ser livre. Ele me ensinou a perceber que “a liberdade é um dom altamente
perigoso, mas é o que distingue a pessoa dos outros seres” (La gioia di essere liberi. Pádua:
Messaggero, 2002, p. 10). Por ser um homem livre Paoli nunca teve medo de dizer
o que pensa e suas profecias anteciparam realidades que hoje estamos
presenciando. Por várias vezes denunciou certo tipo de cristianismo que foge
deste mundo para viver refugiado num “mundo metafísico”, tornando-se assim
antiético e incapaz de oferecer à humanidade a capacidade de amar e de cuidar
do outro. “O cristianismo foi excessivamente pouco terreno e por isso se tornou
materialista. Exatamente porque somos pouco terrestres nos tornamos altamente
materialistas diante do dinheiro e do consumismo” (Ibid., p. 19). Em outro texto Paoli diz: “Aspirar ao céu, não amar
a terra, gerou uma certa indiferença frente à sociedade política e não
contribuiu para sanar a agressividade do homem em relação às coisas” (Fraternidade no mundo. Exigências da
Eucaristia, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 74).
Profeta da
fraternidade e da esperança Arturo sempre apontou caminhos alternativos
concretos para um novo mundo, antes de tudo com o seu testemunho de vida e, ao
mesmo tempo, com seus escritos sempre lúcidos e críticos. “Cristo está preso
numa fortaleza construída por uma teologia atenta mais em conhecer a sua
essência do que o seu projeto”, afirmava em 1992 no seu livro Testemunhas da Esperança (Paulus).
É consolador
ver um cristão chegar aos 100 anos de idade sem ter perdido a lucidez e sem ter
se vendido em troca de favores e promoções eclesiásticas. Estas pessoas, como o
velho Eleazar (1Mac 7,23-28), preferiram nunca usar de fingimento e de
dissimulação, preocupados em não desencaminhar as pessoas, principalmente os
jovens. As Igrejas estão precisando de pessoas assim, pois elas estão sendo
destruídas por carreiristas e oportunistas, amantes do dinheiro e dos cargos,
incapazes de sinalizar algo novo para a humanidade. “Os católicos me dão a
impressão de serem como aquelas damas de um tempo atrás, que se colocavam
diante do espelho para se arrumarem e terminavam por perder o espetáculo” (La pazienza del nulla, p. 102).
Nenhum comentário:
Postar um comentário