terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Fatos & Personagens: Arturo Paoli


Arturo Paoli: um século de profecia
José Lisboa Moreira de Oliveira
No dia 30 de novembro passado Arturo Paoli completou um século de vida. Nascido em Lucca, na Itália, Arturo Paoli é autor de mais de cinquenta livros, traduzidos em várias línguas e de milhares de artigos publicados em diversas revistas. Começou a escrever e a fazer conferências em 1933. Viveu na própria pele a experiência dramática das duas grandes guerras mundiais, tendo assistido por diversas vezes cenas horríveis das brutalidades cometidas pelo fascismo e pelo nazismo. Aos vinte e cinco anos de idade decidiu ser padre, entrando no seminário diocesano de sua terra natal. Foi ordenado presbítero no dia 23 de junho de 1940, quinze dias antes de Mussolini apoiar o nazismo, levando a Itália a entrar em guerra. Durante a segunda guerra mundial ajudou as vítimas do conflito, inclusive hebreus perseguidos pelos alemães e pelos fascistas. Por essa razão, em 29 de novembro de 1999, recebeu na embaixada italiana de Brasília o título de “justo entre as nações” e seu nome foi inscrito no “jardim dos justos” de Jerusalém, junto com todos aqueles que o Estado de Israel reconhece como “justos” diante dos horrores do Shoah (Holocausto).
Já desde os primeiros anos do exercício do ministério presbiteral Arturo se revelou um profeta incômodo. Em 1949, a pedido do então subsecretário de Estado do Vaticano Giovanni Battista Montini (futuro papa Paulo VI), assumiu o encargo de vice-assistente da Juventude de Ação Católica (JAC). Para tanto se transferiu para Roma. Uma das primeiras ações de Arturo foi estimular os jovens a participar ativamente da vida política com autonomia e liberdade, mesmo não deixando de lado a função dos católicos neste espaço significativo. Esta sua iniciativa levou a um confronto direto com a presidência da Ação Católica e com o próprio papa Pio XII. Arturo foi acusado de ser o responsável pelo conteúdo de um artigo assinado por outro autor e por isso foi afastado da direção da Ação Católica, apesar da intervenção de Montini.
Como “castigo” por sua rebeldia Arturo foi nomeado capelão dos navios que transportavam emigrantes italianos para a América Latina. Numa dessas viagens teve contato com o quase desconhecido grupo dos Irmãozinhos de Charles de Foucauld. Ficou fascinado pelo carisma do grupo e depois de quarenta anos de idade iniciou o noviciado no deserto de El Abiodh na Argélia. Aos 48 anos de idade foi enviado pela comunidade dos Irmãozinhos para a Argentina. De início não foi fácil para um europeu se inculturar numa realidade bem diferente. Mas o contato com a realidade sofrida dos pobres terminou por provocar nele uma verdadeira conversão. Paoli, antes um nostálgico da sua Itália, assume para valer a causa dos oprimidos e com ela se identifica plenamente. Por isso a ditadura civil-militar que se instaurou na Argentina nos anos 1970 passou a considerá-lo um inimigo a ser eliminado. Por essa razão a comunidade dos Irmãozinhos achou melhor transferi-lo para Monte Carmelo na Venezuela. Aqui Arturo descobre de modo definitivo o significado da sua humanidade: o amor, a responsabilidade e o cuidado se tornaram os principais elementos da sua nova identidade.
Em meados dos anos 1980 Paoli se transfere para o Brasil. Depois de alguns anos vividos no Rio Grande do Sul se estabeleceu em Foz do Iguaçu no Paraná, onde viveu acampado nas favelas e entre os sem-terra até 2005, quando voltou para a Itália. Em 2000 recebeu um convite para participar em Roma do Jubileu dos Idosos e fazer uma saudação ao papa João Paulo II. Em uma carta aberta recusou o convite dizendo claramente que, em consciência, não podia dirigir uma palavra de saudação a um papa que destruiu a Igreja dos pobres, puniu teólogos comprometidos com a causa do povo e nomeou bispos ultraconservadores que sistematicamente destruíram experiências significativas de Igreja, como, por exemplo, as comunidades eclesiais de base. Atualmente Arturo vive em Lucca, sua terra natal, como capelão de uma capelinha situada nas colinas que circundam a cidade. A capelinha é visitada constantemente por uma multidão de pessoas, especialmente de jovens, proveniente de várias partes do mundo que procuram Arturo, pois o veem como referência segura sobre a qual depositar suas inquietações e esperanças. Seu último livro La pazienza del nulla (A paciência do nada) publicado em maio de 2012 já está na quarta edição.
Não conheço pessoalmente Arturo Paoli. Conheço-o através de seus escritos que passei a “devorá-los” desde 1980, quando, participando de um retiro, o pregador fez referências ao seu livro Camminando s’apre cammino (Caminhando se abre caminho) no qual Paoli relata a sua experiência na Venezuela, especialmente seu encontro com Gaudy, uma mulher vista apenas como objeto sexual por seu homem, mãe de filhos sem pai e trabalhadora incansável. A partir de então comecei a ler todos os livros de Arturo que encontrava. Em seus escritos encontrei referências das quais precisava para continuar firme na opção por uma Igreja da Libertação e pelos pobres. Em muitos momentos da minha vida os escritos de Paoli me ajudaram a destravar o que parecia bloqueado numa Igreja que a partir de 1978 começa sua guinada para a direita e para o conservadorismo.
O que mais me admira em Arturo Paoli é a sua alegria de ser livre. Ele me ensinou a perceber que “a liberdade é um dom altamente perigoso, mas é o que distingue a pessoa dos outros seres” (La gioia di essere liberi. Pádua: Messaggero, 2002, p. 10). Por ser um homem livre Paoli nunca teve medo de dizer o que pensa e suas profecias anteciparam realidades que hoje estamos presenciando. Por várias vezes denunciou certo tipo de cristianismo que foge deste mundo para viver refugiado num “mundo metafísico”, tornando-se assim antiético e incapaz de oferecer à humanidade a capacidade de amar e de cuidar do outro. “O cristianismo foi excessivamente pouco terreno e por isso se tornou materialista. Exatamente porque somos pouco terrestres nos tornamos altamente materialistas diante do dinheiro e do consumismo” (Ibid., p. 19). Em outro texto Paoli diz: “Aspirar ao céu, não amar a terra, gerou uma certa indiferença frente à sociedade política e não contribuiu para sanar a agressividade do homem em relação às coisas” (Fraternidade no mundo. Exigências da Eucaristia, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 74).
Profeta da fraternidade e da esperança Arturo sempre apontou caminhos alternativos concretos para um novo mundo, antes de tudo com o seu testemunho de vida e, ao mesmo tempo, com seus escritos sempre lúcidos e críticos. “Cristo está preso numa fortaleza construída por uma teologia atenta mais em conhecer a sua essência do que o seu projeto”, afirmava em 1992 no seu livro Testemunhas da Esperança (Paulus).
É consolador ver um cristão chegar aos 100 anos de idade sem ter perdido a lucidez e sem ter se vendido em troca de favores e promoções eclesiásticas. Estas pessoas, como o velho Eleazar (1Mac 7,23-28), preferiram nunca usar de fingimento e de dissimulação, preocupados em não desencaminhar as pessoas, principalmente os jovens. As Igrejas estão precisando de pessoas assim, pois elas estão sendo destruídas por carreiristas e oportunistas, amantes do dinheiro e dos cargos, incapazes de sinalizar algo novo para a humanidade. “Os católicos me dão a impressão de serem como aquelas damas de um tempo atrás, que se colocavam diante do espelho para se arrumarem e terminavam por perder o espetáculo” (La pazienza del nulla, p. 102).

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